Recentemente, ouvi de uma colega um relato de que, em uma das reuniões que estão acontecendo para revisão do Plano Diretor de São Paulo, houve um intenso debate em torno da questão da proteção dos entornos de imóveis tombados, e do conceito de "paisagem cultural". Ou seja, tratou-se da proteção ao patrimônio arquitetônico inserido em seu contexto urbano, em sua ambiência.
Embora tardio, o debate é oportuno: num momento de aquecimento do mercado imobiliário, incorporadoras e empreiteiras investem cada vez mais intensamente na aquisição de lotes para remembramento, levando à rápida desaparição de casas em sequência, descaracterizando áreas residenciais quase que da noite para o dia. A velocidade dessa descaracterização é tamanha que já motivou reações, como o site e blog "São Paulo Antiga", denunciando as demolições desenfreadas. Aqui mesmo, neste blog, já postei um testemunho relatando essas transformações e o efeito resultante. Quando até mesmo um bairro de visibilidade para os formadores de opinião, como Pinheiros, também é vitimado pela sanha demolidora, mobilizações e protestos começam a acontecer e a incomodar a aparente "passividade" (com todas as aspas possíveis) com que a população lida com o processo.
Depois de tanta destruição, e da repercussão negativa gerada, o setor imobiliário parece ter começado a olhar para a questão e, aparentemente, a participar da discussão. E eis que, nesta audiência que a colega testemunhou, um representante do setor se manifestou nos seguintes termos (não se trata de uma transcrição ipsis literis, até mesmo porque eu não a testemunhei): "é preciso desmistificar a ideia de que o setor imobiliário só destrói e não se importa com a cidade. Nós só queremos regras claras para seguir". Gostaria muito de poder dizer que acredito na declaração, mas uma prática muito comum no setor desmente-a por completo.
Por um lado, é preciso reconhecer que o interesse em se colocar na discussão é positivo, e mais honesto do que simplesmente ignorá-la e agir à revelia dos anseios coletivos, como vinha acontecendo com tanta frequência. Além disso, a declaração obriga a reconhecer que o que denominamos, genericamente, de "o setor imobiliário" ou "a especulação imobiliária", é de fato um reducionismo: primeiro porque, como qualquer grupo social, o grupo de investidores e empreendedores imobiliários provavelmente apresenta um perfil heterogêneo, tanto quanto seriam grupos como "os sem-terra", ou "a classe média". Se criticamos generalizações redutoras, essa crítica também deve incluir também grupos como o setor imobiliário. Segundo, a generalização tende à reificação: trata-se do setor ou do processo como se fosse um indivíduo, com interesses, disposições e atitudes unificados e coesos.
É possível reconhecer, portanto, que no setor imobiliário - como em tantos outros - há pessoas e empresas bem e mal intencionadas, que adotam práticas condenáveis ou louváveis. Porém, neste caso, há questões de fundo que precisam ser consideradas. A primeira é que, no regime de propriedade que temos no país e na cidade, baseado no "lote", não há nenhum instrumento legal consolidado que permita aos moradores do entorno de um empreendimento interferir ou influir nas decisões de projeto e de construção de modo a harmonizá-lo ao entorno. E com o processo de incorporação e remembramento de lotes, tampouco existe qualquer impedimento legal a que um empreendimento se desvincule inteiramente de características anteriores, como gabarito, padrão construtivo, relação com a rua ou outro. Como resultado, uma completa descaracterização de um determinado ambiente urbano pode ser promovida inteiramente dentro da lei. Portanto, as regras claras existem, mas não são suficientes para garantir a conservação de paisagens e referenciais urbanos que possam ser considerados relevantes para a memória e história coletivas.
A segunda questão é que, em certos casos, a lei é contínua e notoriamente burlada, desafiada ou desrespeitada. Seja em termos de zoneamento (construções que ultrapassam os limites estabelecidos pelos parâmetros de ocupação do solo), seja em relação ao gabarito (em caso de limitação devido aos "cones de aproximação" de aeroportos, por exemplo) ou à envoltória de imóveis tombados, assume-se a premissa de que o Poder Público é incapaz de fiscalizar todas as etapas da implantação de um empreendimento, ou que, consumado o fato, não haverá meios de revertê-lo (quem assinaria o "Demula-se"?). Sem falar de casos de conluio entre empreendedores e gestores públicos, como o infame Aref.
Pode até não ser a regra no setor, mas o problema de haver práticas como essas é que elas, numa economia amoral como a nossa, pressiona todos os demais agentes. A irregularidade "premiada" garante maiores ganhos, maior concentração de recursos e poder de barganha, mina resistências e faz parecerem mais caras as práticas corretas. A vantagem da trapaça não punida é difícil de superar.
Então, se há aqueles, no setor imobiliário, interessados em buscar soluções que conciliem desenvolvimento econômico e lucros com o ganho ambiental ou conservação de paisagens urbanas significativas, deveria partir destes o enfrentamento e o combate das irregularidades e das vantagens indevidas. Sindicatos e associações de classe do setor deveriam ser os primeiros a denunciar os pares que incorrem em abusos e práticas condenáveis. Deveriam denunciar, repudiar publicamente e até punir, dentro de suas competências, os empreendedores ou investidores que lançassem mão dessas vantagens indevidas. Denunciar os "corruptos" (geralmente identificados apenas entre os servidores públicos) sem desmascarar igualmente os "corruptores" é inócuo e enganador, e somente a garantia de um ambiente de pleno respeito às regras pode garantir a concorrência leal. Do outro lado, a disposição para negociar com a coletividade (a vizinhança e os órgãos de proteção ao patrimônio cultural ou ao meio ambiente) e buscar soluções conciliatórias (que, em muitos casos, pode sim implicar na moderação de ganhos) deveria ser assumida e promovida com maior empenho.
Até o momento, não tenho notícia de haver qualquer manifestação em qualquer dessas direções. Enquanto assim for, não há razão para que a sociedade conceda o voto de confiança reivindicado pelo representante do setor na audiência pública. O "mito", por enquanto, é o que está mais próximo da realidade.
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