segunda-feira, 22 de abril de 2013

Questões para a PPP da “Casa Paulista” para o centro de São Paulo

Neste fim de semana foi divulgada uma Carta Aberta, assinada por diversas entidades ligadas à questão da moradia em São Paulo, questionando o formato e os princípios atuais da proposta da PPP "Casa Paulista" para o centro da cidade. Essa PPP pretende viabilizar as prometidas 20 mil unidades habitacionais na região com as quais o governo do estado e a prefeitura se comprometeram.
O que apareceu, à primeira vista, como uma iniciativa louvável de soma de esforços entre as esferas administrativas, coisa rara na gestão pública deste país (veja aqui o comentário de Raquel Rolnik sobre o assunto), imediatamente começou a revelar traços de uma forma de planejamento que tem como ponto de partida e finalidade última os interesses imobiliários e construtoras/empreiteiras e afins. A habitação popular, tomada como a justificativa e pretexto para a PPP (sobre o formato PPP, outro comentário interessante de Rolnik aqui), parece ficar num segundo plano bastante subalterno, daí a justificada preocupação dos movimentos sociais e  das organizações que subscrevem o documento.
Vale a pena ler!


CARTA ABERTA

Questões para a PPP da “Casa Paulista” para o centro de São Paulo 
As entidades abaixo assinadas vêm manifestar sua preocupação diante do lançamento da proposta de Parceria Público Privada formulada por empresas privadas para a Agência “Casa Paulista” do governo do Estado, que recentemente contou com a adesão da Prefeitura, para a produção de 20.000 unidades habitacionais na área central do Município de São Paulo.
A proposta parece contemplar reivindicações históricas dos setores que atuam em defesa do direito à moradia no país, incluindo a provisão de habitação popular no centro, o estímulo a uma ocupação com mistura social e a combinação de subsídios e cooperação entre União, estados e municípios. Mas tais conquistas podem não se tornar realidade, caso não sejam equacionadas algumas questões essenciais. 
Tal como se apresenta até o momento, a proposta não foi formulada no âmbito de um plano habitacional abrangente para a cidade e não contou com a participação de diversos segmentos da sociedade civil interessados no tema. Há um descolamento em relação à situação de moradia na região, marcada por cortiços e ocupações, alto índice de idosos, moradores em situação de rua e trabalhadores informais, além da existência de um parque edificado ocioso que não cumpre sua função social.
Além disso, o modelo adotado reduz a intervenção habitacional à construção e oferta de novas unidades e subsídio à aquisição, negligenciando questões centrais como a política fundiária e outras formas de promoção do direito à moradia, como a locação social e a reabilitação de prédios subutilizados.
Considerando tratar-se de um projeto de intervenção urbana e não de uma política habitacional abrangente – que deve ainda ser formulada e debatida com a sociedade –ainda assim são nossos principais objetos de preocupação os seguintes pontos:
  1. Ação habitacional sem política habitacional: entendemos que embasar a política habitacional para a área central em uma ação, modelada ou não como uma PPP, é uma maneira equivocada de tratar um tema tão complexo, podendo acirrar os conflitos pela disputa fundiária diante do cenário de especulação imobiliária que testemunhamos em São Paulo. Uma política efetiva deve vir precedida de um diagnóstico mais preciso do déficit e da inadequação habitacional, da cidade e dos seus diferentes territórios, e da especificidade da área central. Deve ainda vir acompanhada de uma política fundiária que lhe dê suporte.
  2. Indefinição das áreas de intervenção e fragmentação das ZEIS 3: a proposta delimita seis perímetros, mas não especifica quais os limites de um eventual decreto que os torne sujeitos à desapropriação nem se eles serão integralmente submetidos aos planos de urbanização das ZEIS. Por outro lado, ignora a delimitação das ZEIS 3 ao não abordá-las de forma integrada, valendo-se, entretanto, de alguns de seus lotes.
  3. A PPP ignora os Conselhos Gestores das ZEIS 3: conforme exigência estabelecida no capítulo da Gestão Democrática e Controle Social constante do PDE de 2002, em cada perímetro de ZEIS deve ser formado um Conselho Gestor, eleito por representantes da sociedade, que acompanha e elabora um plano de urbanização do local. O prazo apresentado para a implantação da PPP claramente ignora o tempo necessário à eleição e atuação dos Conselhos.
  4. Indefinição sobre a execução da desapropriação: não está clara a extensão das atribuições do parceiro privado, no tocante à desapropriação dos imóveis afetados. É preciso esclarecer a quem cabe conduzir as negociações: se ao agente privado caberá solicitar ao Poder Público as desapropriações, ou se contará com a prerrogativa de promovê-las diretamente (tal como na lei da Concessão Urbanística aplicada ao projeto Nova Luz, cuja legalidade foi amplamente questionada). Neste segundo caso, cabe esclarecer se o agente privado poderá fazer desapropriações para implantar outros usos, que não o habitacional.
  5. Ausência de definição do perfil dos beneficiados: a proposta, veiculada como alternativa para quem mora na periferia e trabalha no centro, está descolada das características dos atuais moradores do território em condições de inadequação habitacional: em grande medida, locatários de baixíssima renda que não se enquadram no perfil socioeconômico exigido pelas linhas de financiamento existentes, mesmo contando com amplo subsídio. A prioridade dada a trabalhadores do centro, sem detalhar tal categoria e definir critérios de verificação, mostra-se ptemerosa, uma vez que a maioria dos trabalhadores do centro é informal. No caso da ZEIS 3 C 016 - Sé (inserida no perímetro do Projeto Nova Luz), 85% da população possui renda inferior a 3 s.m., 72% habitam imóveis alugados e cerca de 85% são trabalhadores informais.
  6. Risco de gentrificação: a PPP está formulada a partir da oferta de moradia e não da demanda real por habitação existente no território. Portanto, ameaça a permanência da atual população residente, que pode ser expulsa pela substituição do tecido existente e pela falta de alternativas adequadas ao seu perfil. Além disso, a proposta não traz preocupações em relação à permanência dos novos moradores de baixa renda na região central após a aquisição das unidades.
  7. Falta de critérios para definição e controle da qualidade da habitação social: a proposta não apresenta os parâmetros mínimos de qualidade dos tipos habitacionais, nem sequer menciona a necessidade de sua definição a partir de um amplo processo de discussão e construção com os atores sociais envolvidos. O empreendedor deve atender a parâmetros mínimos para que as necessidades habitacionais sejam atendidas adequadamente.
  8. Impacto nas atuais atividades produtivas locais: a proposta é omissa quanto ao impacto nas atividades econômicas existentes nas quadras afetadas (comércio e serviços, de pequenos empresários) durante todas as etapas de sua implantação. A falta de definições claras sobre o seu destino, assim como sobre as fases, frentes e prazos da obra também impacta negativamente os atuais ocupantes do território, incluindo comerciantes, prestadores de serviços, trabalhadores e usuários.
  9. Indefinição quanto ao atendimento habitacional provisório: a proposta também é omissa quanto ao impacto das intervenções na vida da atual população moradora, não definindo o atendimento que será oferecido nas eventuais remoções para a execução das obras, mesmo que provisório.
  10. Indefinição quanto ao cronograma de atendimento das diferentes faixas de renda: A falta de definição dos perfis sociais prioritários de atendimento pode dificultar o acesso da população de mais baixa renda à produção habitacional, tendo em vista o progressivo encarecimento do preço da terra como consequência da intervenção urbana.
  11. Exclusão de segmentos vulneráveis no cadastro realizado pela concessionária: A proposta delega ao concessionário o cadastro e seleção dos beneficiários, o que significa adoção de critérios de mercado, e não de prioridade social. O único ente legítimo para execução dos cadastros é o poder público.
Assinam esta Carta Aberta:
Associação dos Moradores e Amigos da Sta Ifigênia e Luz - AMOALUZ
Central de Movimentos Populares – CMP
Conselho Gestor ZEIS 3 C 016 –Sé – Representantes da Moradia
Defensoria Pública do Estado de São Paulo- Núcleo de Habitação e Urbanismo
Frente de Luta por Moradia – FLM
Grupo de Articulação para Moradia do idoso da Capital - GARMIC
Habitat Projeto e Implantação para o Desenvolvimento do Ambiente Habitado e Urbano- Brasil Habitat
Instituto Polis
Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade - LabCidadeFAU-USP
Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos - LabHab FAU-USP
Movimento Apropriação da Luz
Movimento de Moradia Para Todos – MMPT
Movimento de Moradia da Região Centro – MMRC
Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da USP - SAJU
União dos Movimentos de Moradia – UMM
Centro Gaspar Garcia.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Cidades inventadas

O Brasil é um país de urbanização caótica e de crescimento desordenado porque não temos uma tradição de urbanismo e planejamento no Brasil, certo?
Errado.
Ainda está por se fazer um estudo mais aprofundado que identifique e demonstre de onde esta ideia se originou e como foi difundida a ponto de se tornar um lugar-comum tão banal (e enganoso) quanto dizer que o centro de uma cidade é seu "coração" ou que as avenidas são "artérias" e as áreas verdes seus "pulmões". Em outra ocasião, posso retomar esta ideia problemática de associar a forma urbana a organismos vivos, mas o que interessa aqui é esta ideia de que nossas cidades são "caóticas" porque "não planejadas".
Uma das fontes deste argumento é o clássico ensaio de Sérgio Buarque de Hollanda, "O Semeador e o Ladrilhador", capítulo do livro Raízes do Brasil. Sérgio Buarque defende a ideia de que a colonização espanhola da América optou pelo traçado urbano do "ladrilhador", reticulado e ortogonal - portanto, "planejado" - enquanto o colonizador português teria adotado o padrão do "semeador", em que o traçado das cidades é menos rígido e mais "espontâneo", uma disposição à informalidade e um desapreço pelo controle e planejamento antecipados, que se evidenciaria num traçado mais regular. O argumento de Sérgio Buarque foi posteriormente contestado por Nestor Goulart Reis Filho em sua tese de livre docência, que resultou no livro Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil, 1500 - 1720.
O documentário abaixo, Cidades Inventadas, foi produzida para o canal de TV History Channel, e vai na contramão do chavão (contando, inclusive, com diversos depoimentos de Nestor Goulart).

Em resumo, o que se diz ali é que há sim uma tradição de não apenas planejamento, mas também de desenho e construção de cidades, especialmente de cidades capitais no país. Desde a primeira capital da colônia - Salvador - à nossa atual capital da Federação - Brasília - o Brasil foi palco de uma interessantíssima experimentação urbanística, que também incluiu a capital do Brasil Holandês - Recife.
A despeito desta "tradição", uma herança igualmente histórica e permanente permanece como nosso grande desafio: o de estender a cidade "planejada" a toda sua população, especialmente os mais pobres. Assim, o documentário procura mostrar também como mesmo essas cidades inventadas são marcadas pela segregação socioespacial violenta de sua população pobre. Junto com isso, os usos e as manifestações culturais dessas populações (compostas, por herança e "tradição" escravagista, majoritariamente de negros) são estigmatizados e marginalizados.
Embora em alguns aspectos já esteja datado, não se pode dizer que os desafios estejam superados, pelo contrário. E, claro, a noção da desordem e da ausência de planejamento igualmente permanecem. Contestar esses lugares-comuns implica desconstruir os argumentos e questionar seus enunciadores em seus interesses e motivações: o que se esconde por trás da aceitação acrítica de um estereótipo, e o que ele procura obscurecer?
Algumas dessas questões, e um debate sobre a polêmica com Sérgio Buarque, é exposta na seguinte conferência pelo próprio arquiteto e historiador Nestor Goulart Reis.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Desabrigados

Faz tempo que os posts com a etiqueta "Trilha sonora" estavam sumidos. Resolvi retomar os escritos a relação música e cidade a partir de uma canção de Paul Simon que me impressionou desde que a ouvi pela primeira vez, com uns 10 anos de idade.
A canção é "Homeless", do álbum Graceland, lançado em 1986:
Contextualizando a canção: no que diz respeito ao artista, Paul Simon é o compositor e letrista conhecido desde os anos 1960 pela dupla com Art Garfunkel. Após o fim da dupla nos anos 70, Simon passa por um período de certo "ostracismo", mas sem deixar de produzir. O álbum Graceland o traz de volta ao primeiro plano da cena pop internacional, graças ao grande impacto causado pelo disco, em geral, e por esta música especificamente. O impacto é explicado, em grande parte, por ter sido um disco produzido em colaboração estreita com diversos músicos (grupos vocais e instrumentistas) sulafricanos, numa época em que se havia declarado um boicote internacional à África do Sul em oposição ao regime do apartheid e à continuidade da prisão de Nelson Mandela. Vários outros artistas se manifestaram a favor de Mandela, como o grupo Simple Minds, por exemplo.

Era um momento em que vários artistas se "engajaram" em campanhas humanitárias, fazendo músicas de "protesto" contra as opressões, a falta de democracia, etc. Campanhas como o Live Aid, USA for Africa (fiquem tranquilos, vou poupá-los de ouvir "We are the world" de novo, mas já deu pra entender o clima, né?) e tantas outras, encampadas por artistas do mais alto mainstream da música pop internacional (ou seria melhor dizer angloamericana?). Nesse contexto, o disco de Simon foi acusado de "trair" o boicote.
Seria fácil defender a atitude de Simon em termos como "à arte tudo é permitido", mas não acho que seja esta a abordagem mais útil. É evidente que Simon não se alinhou ao apartheid, e ao buscar os artistas negros sulafricanos e produzir um disco em que a sonoridade deles se destaca da maneira como ocorre aqui é quase como um recado: "a África do Sul é muito mais do que um regime segregacionista". Bem, afinal de contas, Mandela era quem mesmo?
Por outro lado, os anos 80 foram também um período de florescimento da chamada "World Music", quando artistas anglo-saxões produziram ou se envolveram em projetos musicais com o "terceiro mundo". Dá para lembrar ainda o envolvimento de Sting com a Amazônia, David Byrne com o samba brasileiro, Dead Can Dance explorando as sonoridades árabes e depois caribenhas... Sem falar nas coleções de músicas de países exóticos, como a recente série Putumayo. Mas Simon poderia (mas não deve) ser visto como um artista pegando carona nesta moda. Digo "não deve" porque suas pesquisas musicais são muito anteriores a essa moda - na verdade, ele seria talvez um verdadeiro precursor, desde os tempos de Simon & Garfunkel, como na versão que fizeram de El Condor Pasa e que ajudou a popularizar a música andina:



O conteúdo ideológico da "world music" é controverso, podendo ser associado a uma nova espécie de colonialismo e dominação cultural sob a forma de uma valorização a partir de fora de uma expressão vista como "exótica" ou "pitoresca", em que o descobridor acaba sendo mais importante do que o descoberto, o "nativo" é colocado em posição subalterna e reativa diante da "generosidade" do dominador que "descobre" aquela cultura e a traz à civilização. Uma descoberta e uma valorização seletivas, sem dúvida, e limitadas, já que não se propõem a subverter ou reverter a lógica segundo a qual certa cultura é tida como central e as outras são "do resto do mundo". Eurocentrismo ou anglocentismo à toda, e toda a herança romântica de valorizar de fora (e de cima) os primitivos, os nativos, os selvagens, etc. Paul Simon, nesse aspecto, não se salva.
Mas voltemos a Homeless. Imbuída de todo esse espírito "world music", desafiando o maniqueísmo que pretendia combater o racismo da África do Sul isolando-a como um todo, a música é registro de uma realidade ao mesmo tempo específica daquele grupo e genérica da situação dos "sem-teto" em qualquer cidade do chamado "Terceiro Mundo" e, aparentemente, cada vez mais comum também nos ditos países centrais em crise atualmente. Do que fala Homeless?
O refrão em inglês faz referência à imagem idílica do luar dormindo num lago escuro. Há alguma poesia em não ter um teto... Esse tom de consolo serve apenas para atenuar o relato mais duro em outro momento da letra: "Strong wind destroy our home / Many dead, tonight it could be you" (vento forte destrói nossa casa, muitos mortos, esta noite poderia ser você). Um motivo muito recorrente nas canções que retratam as condições de moradia dos mais pobres é exatamente a sujeição desses personagens às condições naturais, e sua vulnerabilidade: um vento, uma chuva ou qualquer outro "desastre natural" condena-os ao total desamparo. Um exemplo desse tipo de temática é identificável também num samba como Aguenta a mão, João, de Adoniran Barbosa.



O sinal da solidariedade de Simon aparece de forma sutil no canto-e-resposta de "somebody sing ih-ih-ih, somebody say hello, somebody cry why" (alguém chora "por quê?"). A letra em em suaíle, de autoria de Joseph Shabalala, infelizmente ficará sem tradução... A única palavra que consegui localizar é "maweni", que parece significar algo como "trapos". É uma pena que, para nós, seu conteúdo permanecerá um mistério (se houver alguém que consiga traduzi-la, por favor poste aqui mesmo!), mas vale o registro, ao menos, de que também Paul Simon olhou para os desabrigados e produziu música da maior beleza.
Isto é, talvez, o que de mais importante se pode "ler" da canção: a beleza ao se referir à situação de perda da moradia só pode ser entendida sob a chave da solidariedade. O posicionamento de Paul Simon enquanto "colonialista" pode ser questionado, mas entender o desabrigo como um drama seríssimo não é uma obviedade: mesmo entre nós, há muitas pessoas que se mostram absolutamente incapazes de demonstrar o mesmo sentimento. São os "cabeças de prego" a que se referem os Demônios da Garoa.