quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O direito de morar

Terça-feira, 16 de setembro de 2014. Mais uma vez, uma ação truculenta de reintegração de posse em São Paulo. Depoimentos e imagens dão ideia de um acontecimento dantesco - crianças, idosos, mães, perseguidos e aprisionados; passantes submetidos aos efeitos danosos dos gases de efeito moral; cerca de 200 famílias despejadas de um edifício que havia sido ocupado depois de dez anos de abandono. A opinião pública parece não se comover com a situação das famílias, e a violência estatal é aplaudida em programas televisivos, noticiários e nas redes sociais. A situação das famílias é ignorada, bastando que se lhes seja atribuída a pecha de "vagabundos", "desocupados" - ou, como tem estado em voga, "comunistas".
A ação da polícia não será comentada aqui, a não ser nesta sentença: foi uma ação brutal, desproporcional e indigna de um Estado democrático. Mas o que interessa aqui não é que esta ação tenha sido praticada, mas que seja tão amplamente aprovada. Para isso, quero destacar aqui quatro pontos e discutir a argumentação de quem se opõe aos movimentos de moradia e suas táticas de ocupações:
  1. Moradia é um direito. 
  2. Manter imóveis vagos não é.
  3. Não se "invade" a casa de ninguém: ocupa-se um imóvel que está abandonado.
  4. A impunidade estimula o crime. E não é às ocupações que eu me refiro.

Moradia é um direito

Comecemos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 (aliás, para quem insiste no discurso de "direitos humanos para humanos direitos", dá uma lidinha nessa declaração e tenta entender melhor do que se trata: link aqui). O Artigo XXV diz que 
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. [grifo meu]
Percebam que "toda pessoa" é incondicional. Não é "toda pessoa que trabalhe", ou "toda pessoa que possa pagar". É simplesmente toda pessoa, qualquer uma. A habitação é uma necessidade fundamental, e deve ser garantida a qualquer pessoa.

Agora a Constituição Federal:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Novamente, são direitos sociais. Generalizados e incondicionais.
Quem critica os movimentos de moradia porque reivindicam moradia "de graça", "sem precisar trabalhar", precisa entender melhor esses princípios. Qualquer pessoa tem direito a um lugar para morar. Ponto. Se ela não pode arcar com a aquisição de um imóvel próprio, se ela não pode arcar com o pagamento de um aluguel, ainda assim ela tem direito a um lugar para morar. Se não é por via do mercado que ela conseguirá isso, o Estado tem dever sim de lhe prover. Ninguém pode ser obrigado a morar na rua, em favelas ou em cortiços em função do que pode pagar.
Fiz questão de citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos para lembrar que isso não é uma invenção da lei brasileira, e não é coisa de comunista. É uma convenção das Nações Unidas. E, de fato, programas habitacionais públicos são uma realidade internacional: França, Inglaterra, EUA... uma rápida procura na internet pode confirmar isso.
Normalmente quem se "revolta" com essa condição ou adquiriu um imóvel ou é capaz de pagar um aluguel. Quando pergunta "trabalhar pra quê?" e diz que é mais "fácil" esperar que o governo lhe dê moradia, evidentemente não está falando de si. Essa pessoa não aceitaria morar nas habitações que são providas pelos programas governamentais: seriam "pequenas demais", "pobres demais", ou "longe demais". Pois bem, é isso que o Estado tem dever de oferecer: o mínimo indispensável para dignidade humana. Quer varanda gourmet? Quer quatro vagas na garagem? Um apartamento de 250 m² ? Morar na Vila Nova Conceição? Pois então pague por isso. Não é o governo que vai oferecer. Por que então se paga por moradia? Para ter acesso a imóveis maiores, melhores, mais bem localizados, o que seja. Os movimentos sociais lutam por condições mínimas. Ou alguém já viu esses movimentos reivindicando apartamentos luxuosos?
Esse mínimo é uma garantia de que alguém que, eventualmente, perca todos os seus recursos e a capacidade de manter um imóvel próprio ou alugado, ainda assim não seja condenado a ir viver na rua, por exemplo. Se essa possibilidade parece remota para nós, é porque a sociedade brasileira é de baixa mobilidade social (ricos permanecem ricos, pobres permanecem pobres), não porque o princípio de universalização da moradia não valha.
Então, alguém dirá que a reivindicação deveria se ater às demandas para o Estado, sem envolver propriedades particulares - ou seja, sem "invasões". Isso leva ao segundo ponto.


Manter imóveis vagos não é

Parece estranho para muita gente, mas o direito à propriedade não é um direito irrestrito.
Sim, a mesma Declaração citada acima diz que toda pessoa tem direito à propriedade. Mas não há uma hierarquia ou prevalência entre um direito e outro. Ou seja, em caso de conflito entre ambos, há que se buscar uma solução conciliadora, e não suprimir um direito em nome de outro.
A nossa Constituição, no mesmo Art. 5º que diz que "é garantido o direito de propriedade" diz, imediatamente a seguir, que "a propriedade atenderá a sua função social". Essa expressão ("função social da propriedade") aparece ainda nos artigos 182 e 183, que tratam especificamente da política urbana. O Artigo 182 diz o seguinte:
[...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
[...] § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Manter imóveis ociosos, portanto, fere o princípio da "função social da propriedade", definido na Constituição Federal (a "lei máxima" do país). A ocupação de um imóvel vago, desta forma, poderia ser justificada como uma atribuição de função social a uma propriedade que não a cumpre presentemente. Mas é claro que esse não é o entendimento que a Justiça dá correntemente. E, aparentemente para a maioria da opinião pública, trata-se de uma apropriação indevida. Uma "invasão". Os movimentos sociais preferem a palavra "ocupação". Qual a diferença?


Não se "invade" a casa de ninguém: ocupa-se um imóvel que está abandonado

Vamos ao dicionário. Segundo o dicionário Michaelis, ocupar significa apoderar-se de; tornar-se dono de; tomar posse de alguma coisa. Já invadir quer dizer entrar à força, assumir indevidamente ou por violência; usurpar. Ou seja, o segundo termo tem, em si, um juízo de valor ("indevidamente") que não está presente no primeiro. A ideia de que se tratam de "invasores" já denota, de antemão, que se julga a ação como indevida. E indevida porque se trataria de uma usurpação: a propriedade particular foi tomada por meio de uma ação que é externa à legalidade. O imóvel nem foi adquirido por compra, nem foi desapropriado pelo governo. Foi "tomado à força".
O argumento principal para esse juízo é a ameaça de generalização. Se for permitida a ocupação de um imóvel particular, logo serão invadidos todos ou quaisquer imóveis, indiscriminadamente. Ninguém mais estará seguro. Frequentemente se alega, de fato, que permitir a "invasão" de imóveis vagos dará início à invasão de casas plenamente habitadas e com uso.
Se alguém conhece algum caso desses, por favor me mostre, porque eu não conheço nenhum. O que sempre vi foi a ocupação de imóveis vazios, completamente desocupados, muitos dos quais inclusive em estágio de deterioração bastante avançada, e frequentemente com dívidas gigantescas junto às prefeituras (no mínimo). O que as ocupações normalmente procuram é, por uma ação contundente (alguns dirão: truculenta, ilegal), forçar o Estado a fazer o que já deveria ter feito: "exigir [...] do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento", como está dito na Constituição. E, enquanto isso não se realiza, as famílias ocupantes permanecem num local que, apenas por ter teto e paredes, pode ser melhor do que a situação de onde elas vieram.
Não há razão, portanto, para que ninguém tema ter sua casa "invadida". Não há nenhum caso desse tipo registrado, que eu tenha conhecimento. Mas se alguém possui um imóvel vazio, aguardando a valorização para revenda, ou uma oferta irrecusável de um investidor, ou a própria desapropriação (para se livrar dos impostos devidos ou da responsabilidade de manter o imóvel), bem... melhor começar a pensar no que fazer desse imóvel.


A impunidade estimula a ilegalidade. E não é às ocupações que eu me refiro

O último ponto que vou discutir aqui é essa ideia de que, se o governo atender às reivindicações dos movimentos populares, ele estará incentivando a ocorrência de novas "invasões" (ocupações). Bem, devo admitir que o argumento procede. Historicamente, o Estado permitiu, por exemplo, que extensas áreas da cidade fossem ocupadas, loteadas e revendidas de forma completamente irregular, sem passar pelos processos formais de aprovação, sem atender aos requisitos urbanísticos exigidos pela legislação em vigência. Posteriormente, esses loteamentos foram anistiados. O resultado, é claro, foi que mais loteamentos irregulares ocorreram.
De forma semelhante, há alguns anos em São Paulo, vários estabelecimentos comerciais de luxo se instalaram em vias que, de acordo com o zoneamento vigente, eram estritamente residenciais. Bem, após seguidas anistias e negociações, o zoneamento foi alterado para que a lei se adequasse à realidade (sim, nessa ordem).
Recentemente, foi noticiado (veja aqui) que diversos clubes, shopping centers, agências bancárias, e até mesmo a Associação Paulista de Magistrados ocupam áreas em São Paulo de forma irregular. Aqui também a inoperância do Estado, seja do Poder Executivo ou do Judiciário, tem contribuído para a generalização da prática irregular / ilegal. A relação entre impunidade e ilegalidade está presente em todas essas situações, da mesmíssima forma como a opinião pública vê a ocupação de imóveis ociosos. A novidade, neste último caso, é a velocidade com que se age para coibir a prática, e a violência aplicada nessa ação.
Podemos adotar a postura vingativa ("PM neles!"), ou tentar entender que há outras maneiras de lidar com os conflitos fundiários que não necessariamente impliquem no uso da violência por parte do aparelho estatal. Mais do que isso: esta é a maneira correta de lidar com o problema.
Se observarmos as normas dos vários organismos internacionais ou agências multilaterais, é possível observar que os casos de "reassentamento involuntário" (ou seja, a remoção de população de uma área para realização de um projeto de desenvolvimento - digamos, urbano/imobiliário) devem ser tratados sob a ótica dos direitos dos reassentados. O próprio Banco Mundial preconiza que, nesses casos, o reassentamento garanta aos atingidos condições iguais ou melhores do que a original. E isto tem justamente a finalidade de evitar o que temos testemunhado: que populações sejam simplesmente despejadas, sem opção. Bem, a política de "reassentamento involuntário" não se aplica totalmente ao caso aqui examinado, mas seus princípios norteadores servem como parâmetro: não se pode simplesmente retirar a população de um lugar que elas habitam (mesmo que provisoriamente; mesmo que de forma irregular ou ilegal) sem que lhes seja oferecida uma opção, igual a ou melhor do que aquela. E isto, simplesmente, porque a moradia é um direito fundamental, como já vimos.
Por que, então, esse direito continua sendo sistematicamente renegado à população pobre de São Paulo? Quem entendeu as ilegalidades acima é capaz de responder: assim como nas ocupações de imóveis vagos, assim como nos loteamentos clandestinos, no comércio irregular, nos terrenos irregularmente ocupados, a "impunidade" gera a ilegalidade.
Os governantes (seja do Executivo ou do Judiciário) agem desta forma com base na certeza absoluta de que nunca serão responsabilizados por essas arbitrariedades. Nenhum juiz será afastado ou denunciado; o governador será reeleito; a imprensa e seus leitores continuarão aplaudindo.
É preciso romper o círculo vicioso da impunidade, portanto. Mas não apenas a impunidade do crime cometido por quem não tem opção de moradia. Também a impunidade de quem desrespeita direitos fundamentais e se beneficia do aparato estatal para fazer valer interesses e direitos estritos, e em benefício de poucos.