sábado, 21 de junho de 2014

O medo do outro: proposta para dessensibilização


Um vídeo que tem circulado pelas redes sociais mostra supostos "VIPs" - ou como a matéria os chama, "yellow blocks" - que assistem a jogos da Copa do Mundo em espaços exclusivos e seletivos. A própria representação desse público pela matéria, e principalmente a repercussão que teve o vídeo, com acalorados defensores e detratores, mostra uma parcela da população brasileira em situação de completo isolamento em relação ao restante da sociedade brasileira. Isolamento autoimposto, voluntário, fundamentado na presunção de que, ao pagar mais por acesso a um espaço exclusivo, teria-se com isso acesso a um mundo de privilégios, conforto e segurança.
Seria fácil aproveitar este espaço aqui para, mais uma vez, repisar os argumentos e as críticas aos personagens da matéria: a visão social que demonstram em seus depoimentos, a desconexão com a realidade da maioria da população. Muitos já trataram de ridicularizar a postura dos "VIPs", outros tratam de defender a legitimidade de "ter mais quem paga mais". A mim interessa discutir uma questão anterior: o porquê do isolamento. E para isso quero evitar os argumentos naturalizantes - seja o de que a desigualdade é "da natureza humana" (e, portanto, cada um que procure a melhor colocação na parte desigualmente superior) ou que a "luta de classes" é perpétua. Para o bem da vida em coletividade e, mais ainda, para o bem das cidades brasileiras, há que se tentar entender as razões dessa tão forte tendência ao isolamento. A seguir, deve-se tentar propor uma possibilidade de sua superação, ou ao menos minimização. Em linhas gerais, para os mais impacientes: o isolamento vem do medo. A superação do medo poderia ser conseguida por uma técnica que, descobri há pouco tempo, é chamada de dessensibilização sistemática. Essa é usada para indivíduos: o que quero propor é um experimento coletivo de dessensibilização.

A cultura do medo

A declaração é explícita no vídeo em questão: a procura por um espaço de privilégio se deve, entre outras coisas (mas eu diria que principalmente), à percepção de que os eventos populares, coletivos, realizados em espaço público, são essencialmente perigosos: o risco de roubos e assaltos (crimes contra o patrimônio), ou de agressões físicas (crimes contra a vida).
É difícil mapear de onde vem essa ideia generalizada de que o espaço público é o lugar do crime e da violência. Mas diversos estudos têm mostrado que a percepção de violência é muito mais intensa do que a violência real. Ou seja: uma "faca no baço" (ou qualquer equivalente) é um evento bastante raro em aglomerações de população. Mas basta que uma agressão ocorra, a notícia corre rapidamente e passa a justificar o medo. Este se alimenta não da certeza, e sim da probabilidade - por menor que seja. Centenas de eventos pacíficos não são suficientes para dissipar o estigma do espaço público como essencialmente violento. Em contrapartida, um único evento negativo o confirma de forma duradoura.
É difícil argumentar contra motivações emocionais, e mais ainda com base em "dados" ou quaisquer elementos "objetivos" - rapidamente rechaçados com um "queria ver se fosse com você". Mas é mais fácil identificar quem se beneficia desta "cultura": certamente, quem lucra com a exploração dos espaços segregados (onde se pode cobrar muito mais por qualquer mercadoria), a indústria da "segurança" privada (individual, com carros, blindagem, câmeras de vigilância, armas, portões elétricos, etc.; ou coletiva: empresas de segurança, milícias, etc.). Não quero dizer com isso que esses beneficiados promovam a violência, mas é fácil admitir que, sendo beneficiários da cultura do medo, não tenham interesse em atenuá-la.
Vou admitir aqui, ainda que pense de forma diversa, que quem tem medo tenha razão para tê-lo. E vou admitir também que os que encontram na segregação a resposta para o medo não sejam pessoas essencialmente más ou estúpidas. Sem questionar frontalmente suas crenças, quero perguntar apenas o seguinte: o que se ganha com o medo? Muitas dessas pessoas já enfrentaram esta questão no âmbito individual: o que se ganha com a timidez? O que se ganha com o medo de pedir aumento, ou de empreender um negócio próprio, ou de planejar uma viagem, ou de pedir alguém em casamento? No curto prazo, talvez ofereça algum conforto e estabilidade. No longo prazo, porém, o medo é essencialmente limitador. Essa ideia, transposta para a vida urbana, mantém sua validade: o medo do espaço público (e do convívio com o público) é também, essencialmente, limitador. De quê? De experiência, de intercâmbio, até mesmo da possibilidade de festa... e de proteção. Muitos já disseram, junto com Jane Jacobs, que os espaços mais seguros da cidade são os que têm gente - múltiplos olhos que inibem a ação violenta ou criminosa, mesmo que de forma não deliberada.

Dessensibilização sistemática

O caminho para superação do medo passa, e não vejo outra maneira, por enfrentá-lo. Sim, enfrentar o medo, não o que o justifica. As razões para a violência real são múltiplas, complexas, e temos pouco o que fazer individualmente contra elas. Alguma precaução é necessária e inevitável. Para além disso, o que resta é dar a essa cautela salutar a dimensão real que ela requer.
Isto significa que é fundamental rever o preconceito segundo o qual toda experiência de espaço público e de convívio entre classes necessariamente resultará em choque, conflito e agressão (em "facada no baço"). Porém, a quebra deste preconceito não é e não deve ser um processo meramente racional. Por isso, não vou me estender aqui tentando "provar" que se trata realmente de um preconceito. Em lugar disso, proponho que se experimente a cidade. Encontre-a e absorva-a em seu repertório de experiência pessoal.
O processo de "dessensibilização" consiste em diminuir o medo progressivamente. E isso se dá passo a passo, com desafios mínimos sucessivos, a serem vencidos um por vez. Cada etapa deve ser profundamente assimilada, registrada (por escrito, se for preciso) antes de se seguir à próxima. E para isso, deve ser praticada repetidamente, até que o medo de realizá-la tenha diminuído sensivelmente ou desaparecido.
  1. O estágio inicial já está cumprido: é buscar espaços de convívio entre iguais, nos espaços devidamente protegidos e segregados (seja uma balada, um shopping center, ou outro qualquer).
  2. Buscar um evento coletivo em lugar não tão ostensivamente isolado, mas com alto grau de segregação contextual. Por exemplo, um pôr do sol nas praças do Alto de Pinheiros.
  3. Participar de um evento coletivo ao qual se pode chegar e sair de transporte individual.
  4. Participar de um evento coletivo em recinto fechado (portanto, com vigilância), ao qual seja necessário ou facilitado chegar por transporte coletivo. Pode ser na companhia de um subalterno (funcionário, empregado, prestador de serviços), se isso trouxer mais confiança.
  5. Participar de um evento coletivo com ampla divulgação, o que garantiria a presença de policiamento reforçado: por exemplo, a Virada Cultural.
  6. Comparecer a um pequeno evento público em local distante de sua residência: por exemplo, um sarau na periferia.
  7. Caminhar sozinho pelo Centro da cidade, durante o dia. Progressivamente, avançar para o final da tarde, até ser capaz de andar pelo Centro à noite. Sim, neste processo, você ganhará confiança, experiência, e saberá reconhecer os lugares mais e menos seguros, e verá que essa diferença existe: alguns riscos são desnecessários, outros são amplamente toleráveis e até compartilhados por outras tantas pessoas.
  8. Promover, você mesmo, um evento, onde a presença de estranhos seja admitida. Não admita a cobrança de ingresso, consumação mínima ou nada que o valha. Você controla o contexto, garante uma aglomeração pequena o suficiente para se assegurar que não ocorra um evento negativo.
Se você, leitor, é capaz de cumprir os oito passos, parabéns! As cidades são seu habitat. Se não consegue, não se preocupe: seu sentimento é amplamente compartilhado por muitos outros. Vocês podem combinar de fazer os testes juntos, compartilhar as experiências, dividir aflições. Será, inclusive, muito divertido. Longe de mim achar que isso é uma "solução para a violência". Mas a cidade será, certamente, mais e mais amigável, e nossos temores diminuirão consideravelmente.