sexta-feira, 31 de maio de 2013

Arquitetura e música: uma relação esquecida?

Numa frase famosa, atribuída ora a Schopenhauer, ora a Goethe, diz-se que "arquitetura é música petrificada" (até onde pude verificar, Goethe fala de "música congelada"). De outro lado, o guitarrista Robert Fripp declarou que "música é a arquitetura do silêncio". As frases retomam ou dão seguimento a uma noção de arquitetura que remonta à Antiguidade, pelo menos, mas é curioso que na atualidade ela pareça uma metáfora criativa e instigante, mas pouca coisa além disso. Em que ponto a proximidade entre música e arquitetura teria sido esquecida - ou, no mínimo, obscurecida? Esse post tem a intenção de abrir a discussão, sem pretender um exame aprofundado ou extensivo do tema.
Para começar o exame, vale observar uma passagem do Tratado de Arquitetura de Vitrúvio. Logo no início do tratado (Livro I, Capítulo 1), quando discute os conhecimentos necessários ao arquiteto, Vitrúvio afirma: "Igualmente convém que saiba música para dominar as suas leis harmônicas e matemáticas e, além disso, possa corretamente efetuar os cálculos de direcionamento das balistas, catapultas e escorpiões."
A chave que aproxima arquitetura e música nesta definição é, portanto, a matemática - mais precisamente, a geometria. Talvez remetendo à escola pitagórica de pensamento, a definição vitruviana se apoia na noção de harmonia como uma proporção agradável entre partes. Como se sabe, Pitágoras teria descoberto a "série harmônica" musical a partir da divisão de uma corda em proporções regulares: a partir da extensão total da corda, presa às duas extremidades e tangida, obtém-se a nota fundamental, mais grave; prendendo-se a corda em sua terça parte e à quinta parte, obtêm-se os sons harmônicos fundamentais - a "terça" e "quinta" e, prendendo-se a corda na sua metade, obtém-se a mesma nota da fundamental, porém mais aguda - a "oitava". Esses intervalos fundamentais produziriam sons que, se tocados juntos, resultariam em sons agradáveis - "harmônicos". Outros intervalos, mais irregulares, produziriam sons desagradáveis, desarmônicos. Ou, na linguagem musical atual, diferenciam-se então os intervalos consonantes e dissonantes. A figura abaixo ilustra algumas dessas relações:


José Miguel Wisnik explica desta forma a "sequência harmônica" musical:
O primeiro harmônicode uma fundamental é a "mesma nota" repetida uma oitava acima [...] e resulta do dobro do número de vibrações do som fundamental (que se obtém, numa corda, com sua divisão ao meio, ou com a duplicação do seu grau de tensão por esticamento). [...] O segundo harmônico é a nota sol, que compõe o intervalo de quinta (nota que está, no teclado do piano, cinco notas acima do som anterior, o dó), e resulta de uma multiplicação frequencial da ordem de 3/2 em relação ao som anterior, ou da divisão da corda em uma porção correspondente a 2/3 dela. O terceiro harmônico, que consiste na volta da nota , faz com o sol (segundo harmônico) um intervalo de quarta, resultando de uma multiplicação de 4/3 da frequência do som anterior (ou de uma divisão de 3/4 da corda). Os dois harmônicos seguintes, o mi e o sol [...], introduzem os intervalos de terça maior e terça menor e resultam, dentro da mesma progressão, das relações numéricas de 4/5 e 5/6, respectivamente. (WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 60)
Wisnik observa ainda que a descoberta dessas proporções teve larga influência na metafísica ocidental, fornecendo a analogia entre a sensação de som e sua numerologia implícita possibilitou formular a ideia de um universo constituído de escalas de correspondências (idem, p. 62). Algumas das relações descobertas por Pitágoras se tornaram canônicas nas composições arquitetônicas: as relações de "quarta", "quinta" e "oitava" eram denominadas, pelos gregos, de diatesaron, diapente e disdiapason (ou diapason, quando se tratava do uníssono). Essas proporções definiram algumas das relações espaciais canônicas da arquitetura clássica. Assim como na música, as variações a partir da série harmônica definiram os "modos" musicais, a composição arquitetônica se baseou num conjunto de relações numéricas (proporcionais) entre suas dimensões (altura, largura e profundidade), ou ainda entre seus elementos, especialmente as colunas. Assim, para ficar em apenas um exemplo, relações fixas foram definidas entre "cheios" e "vazios" na disposições das colunas dos templos, definindo "intercolúnios" constantes:

 Por séculos, a composição erudita de arquitetura dialogou com princípios de "harmonia" (proporção) e "ritmo" (alternância entre elementos ou entre "cheios" e "vazios") que mantinham próxima a relação com a música:


Ficheiro:Beverley minster 016.JPG


Durante a Idade Moderna, o desenvolvimento do sistema tonal em música proporcionou a exploração de intervalos musicais diversos, de harmonias mais complexas, com a progressiva incorporação de "dissonâncias" que antes seriam consideradas desarmônicas e, portanto, incorretas. No limite, a música do final do século XIX e, sobretudo, as vanguardas do início do século XX colocam em xeque a associação entre a arte e o "belo". Em música, essa disposição se traduz na adoção de procedimentos de composição cada vez mais distantes do tonalismo - até sua total negação ou dissolução atonal ou dodecafônica; em arquitetura, em paralelo, a desvinculação da "fachada" e dos cânones do "academicismo" e dos "historicismos" permitiram o surgimento de uma arquitetura descompromissada com a simetria e as relações proporcionais rígidas (o que permitiu, por exemplo, o desenvolvimento do arranha-céus norteamericano). Em lugar das regras estritas de composição "harmônica", o livre jogo de peças (módulos). A respeito, observa Pedro Sales:
Na música [...] a combinação dos parâmetros de altura, duração, intensidade e timbre desenha linhas verticais (harmonia), horizontais (melodia) e espaço-temporais (ritmo), que se entrecruzam, configurando hierarquias (sistema tonal, modo maior, modo menor) ou séries (atonalidade, dissonâncias), e formas (sonata, cantata, ópera, fuga). [...] Charles Rosen, pianista e historiador da música, em sua biografia sobre Schoenberg, afirma que [...] a música, com Schoenberg, Webern e Berg começa, a ser escrita “nota por nota”. Da mesma forma como o vocabulário e a gramática propostas por Corbusier, por Wright ou pela cidade soviética (ênfase na ruptura, aceitação da fragmentação do real e a impossibilidade de reconstrução da unidade da experiência) buscaram expressar as mudanças da sociedade e do território. No entanto, à diferença do que ocorreria na arquitetura e no urbanismo (cujas diversas linhas de pensamento enfatizariam, a cada momento, os parâmetros de estrutura, de forma ou de paisagem, de modo excludente e irredutível), o desenvolvimento subseqüente da música contemporânea implicaria unificar e universalizar o princípio teórico da série dos doze sons, até então focado apenas nas alturas, para todos os componentes do fenômeno sonoro: além da altura, a duração, a intensidade e o timbre, entrelaçados e coesos, com toda a complexidade e dificuldade que isso comporta, precisamente pela relação que essas características exercem umas sobre as outras. (SALES, Pedro Manuel Rivaben de. Cidade, urbanismo: linhas de devir. Arquitextos, São Paulo, 07.082, Vitruvius, mar 2007 .)
A esta altura, muito em função de uma herança das Belas Artes, a história da arquitetura já havia-se afastado da história da música, fazendo parecer abstrata e de difícil apreensão a similitude entre movimentos que guardam notáveis proximidades. O músico Arrigo Barnabé ainda é capaz de estabelecer essa relação:
Por que [...] não percebemos que o sentido de civilização existente na criação musical é um reflexo mais espiritualizado da capacidade humana de se organizar e viver em cidades? [...] Sem falarmos das possíveis correspondências entre o modulor de Le Corbusier e a série dodecafônica de Schoenberg. E como não pensarmos em música quando lemos em Giulio Carlo Argan (História da arte como história da cidade): “... A cidade ideal, mais do que um modelo propriamente dito, é um módulo para o qual sempre é possível encontrar múltiplos ou submúltiplos que modifiquem a sua medida mas não a sua substância...” (BARNABÉ, Arrigo. Música e cidade. Revista D’Art 10. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, Novembro de 2002, pp. 47-48.)
Como experiência, e a título de exemplo, não seria possível relacionar, então, a apreensão de uma arquitetura como a de Daniel Liebeskind, suas assimetrias e angulosidades - desconfortáveis, intrigantes, "feias" (porque não têm o "belo" como parâmetro ou objetivo) e estranhas, com uma música como a de Arrigo?




Para outras explorações desta relação, ficam aqui, por fim, algumas indicações interessantes:


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