terça-feira, 11 de março de 2014

Novas vias não aliviam o trânsito, só pioram

Talvez se possa dizer que o trânsito é hoje, em São Paulo e cada vez mais em outras grandes cidades brasileiras, uma das principais causas de desgaste físico e mental da população, além de prejuízos econômicos em função do tempo gasto em deslocamentos (ou na falta deles), poluição do ar, ruídos e tantos outros problemas.
O tão conhecido trânsito de São Paulo, avenida 23 de Maio. (Fonte da imagem: http://www.coletivoverde.com.br/wp-content/uploads/2012/04/congestionamento-sp.jpg)
Não é de hoje que se tem criticado, especialmente no meio acadêmico e técnico (urbanistas, engenheiros de trânsito e outros) a excessiva prioridade dada às obras viárias. Seja porque as grandes avenidas se mostraram, ao longo do século XX, urbanisticamente desastrosas (imponto rasgos à paisagem urbana e segregando suas áreas lindeiras), seja ainda porque, simplesmente, fracassaram em sua promessa original: ampliar a "vazão" do trânsito e lhe conferir maior velocidade, ou "fluidez".
O uso dessas expressões tomadas da hidráulica revela claramente o modelo que embasou esses projetos viários: o conjunto de veículos foi tomado como analogia de um fluido, um líquido, que corre por canais de drenagem que devem garantir a máxima vazão sob risco de entupimento e estagnação. Por mais que ainda se encontrem os que defendem esse ponto de vista, sua aplicação e a crença em sua veracidade tem raízes históricas muito mais "poéticas" do que propriamente técnicas. Como mostra Richard Sennett, a analogia dos sistemas viários com o sistema arterial do corpo humano está na raiz dessa concepção, e data ainda dos séculos XVII e XVIII. Essa concepção foi intensamente reforçada pelo sanitarismo do século XIX e início do XX, para o qual a velocidade de circulação era garantia de vitalidade urbana.
A circulação sanguínea descoberta por William Harvey serviu como modelo para a circulação de pessoas e veículos nas cidades. (Fonte da imagem: blog "Filosofia e Filosofias do Renascimento"). Vide também SENNETT, Richard. Carne de Pedra: O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2003.







Há quem diga, atualmente, que o modelo mais apropriado para a compreensão do trânsito seja outro fluido - não líquido, mas gasoso: ocupa-se todo o volume do recipiente, independentemente de suas dimensões. Nessa lógica, portanto, a expansão viária não resolve o problema, pois mais ruas e avenidas significariam somente mais veículos transitando. Pouco tempo é necessário para que uma via aberta para "desafogar" o trânsito esteja, ela também, "afogada". Pode-se discutir a validade de se conceber o trânsito a partir de analogias das ciências naturais (eu, pessoalmente, prefiro pensar que pessoas ativas e pensantes não agem como meras moléculas...), mas aparentemente a conclusão a que se chega a partir dessa nova premissa é verdadeira: mais ruas equivalem a mais trânsito, por paradoxal que possa parecer. E, uma vez que essas descobertas favorecem os argumentos a favor de outros modos de transporte - seja o transporte público de massa ou o individual não motorizado -, é entre os adeptos e defensores dessas outras modalidades que encontramos a maior parte da divulgação de estudos que embasam um novo posicionamento em relação à mobilidade urbana. Aqui são apresentados três desses estudos, dois deles disponíveis no site Bicycle Universe.
No primeiro deles (link aqui), argumenta-se que novas estradas causam dispersão da ocupação (desenvolvimento em áreas longe do centro da cidade), e os novos habitantes da periferia entopem as novas vias enquanto dirigem de e para o seu trabalho na cidade. A ocupação que se desenvolve ao longo de novas rodovias, enchendo-as com o novo tráfego, reduzem a sua capacidade de tirar o tráfego de outros estradas congestionadas. Além disso, a quantidade de alívio do congestionamento oferecido por novas estradas muitas vezes não equivale ao congestionamento causado pelos próprios projetos de construção de estradas. 
No mesmo website (link aqui) é mostrada uma reportagem de 1999 do jornal USA Today, segundo a qual alguns dos maiores e mais caros projetos de construção de estradas dos EUA economizariam aos motoristas apenas 30 segundos no trajeto quando estivessem concluídas. Afirma ainda que os motoristas perdem mais tempo em atrasos de obras rodoviárias do que economizariam em anos de condução nas vias. O argumento é que melhoria das estradas é compensado pelo aumento do volume de tráfego. São citados os seguintes casos:
  • Springfield: uma obra de 8 anos e custo de US$434 milhões causou aos motoristas atrasos de 30 minutos em cada viagem, em horário de rush, através da conexão conhecida como "Mixing Bowl" (que junta o tráfego de três estradas interestaduais). E, quando a obra estivesse pronta, estimava-se que os motoristas ganhariam cerca de meio minuto (!!!) em seu percurso.
  • Salt Lake City: uma obra de 4 anos e custo de US$1,6 bilhão em cerca de 25 km de uma estrada resultaria num ganho de velocidade média de 1,6 km/h.
  • Trenton: uma obra de 3 anos em uma rodovia estadual causaria um atraso acumulado de 250 horas aos motoristas.
No livro Suburban Nation: The Rise of Sprawl and the Decline of the American Dream (DUANY, Andres, PLATER-ZYBERK, Elizabeth e SPECK, Jeff. S/L: North Point Press, 2000, pp. 88-94.), também citado pelo Bicycle Universe (veja aqui), afirma-se que um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley abrangendo trinta condados da Califórnia entre 1973 e 1990 constatou que, para cada 10 por cento de aumento na capacidade de estrada, o tráfego aumentou 9 por cento dentro de quatro anos - ou seja, o benefício do aumento das vias foi praticamente anulado em muito pouco tempo, fenômeno que passou a ser conhecido como "trânsito induzido" (induced traffic). O mais interessante é que se constatou que a lógica também funciona ao inverso: quando a estrada de West Side de Nova York entrou em colapso em 1973, um estudo mostrou que 93 por cento das viagens de carro perdidas não reapareceram em outro lugar - as pessoas simplesmente pararam de dirigir. Um resultado semelhante seguiu a destruição da Embarcadero Freeway após o terremoto de 1989 em San Francisco. Um estudo britânico citado pelos autores teria descoberto que mudanças rodoviárias do centro tendem a impulsionar as economias locais, enquanto os novos caminhos levam ao aumento do desemprego urbano.
Demolição da Embarcadero Freeway. (Fonte da imagem: http://ww3.hdnux.com/photos/10/06/05/2122074/7/628x471.jpg)

Por fim, um artigo publicado na revista New Scientist (link aqui) afirma que o trânsito fluiria melhor nas cidades em que apenas um número limitado de caminhos levassem ao centro, de modo que, para evitar engarrafamentos, seria mais conveniente fechar do que abrir novas vias. Esta descoberta contra-intuitiva é defendida por Neil Johnson, Douglas e Ashton Timothy Jarrett, da Universidade de Oxford, Reino Unido, que desenvolveram um modelo de aproximação de uma rede urbana complexa com apenas um anel viário e uma série de vias arteriais que cruzam no centro. No experimento, observou-se como o tempo médio de deslocamentos mudava à medida que o número de vias aumentava: quando o modelo assumia que não havia congestionamento no centro, o tempo médio da viagem encurtava conforme o número de vias aumentava. Entretanto, quando os investigadores modificaram o modelo para atrasar qualquer percurso que passasse através do centro, os resultados mudaram: com um pequeno número de vias os trajetos inicialmente tornavam-se mais rápidos em estradas adicionadas à rede; para além de certo número de vias, entretanto, a adição de mais estradas aumentou o tempo médio de viagem.
Sabemos que, na história do urbanismo em São Paulo, muitas intervenções urbanas consistiram exatamente em buscar a resolução do congestionamento de áreas centrais por meio da abertura de novas vias, postura cujas expressões máximas são a declaração do presidente Washington Luís ("governar é abrir estradas") e, principalmente, o famoso "Plano de Avenidas" de Prestes Maia e Ulhoa Cintra.
A aposta rodoviarista do urbanismo paulistano: o Plano de Avenidas (1930) de Prestes Maia e Ulhoa Cintra. (Fonte da imagem: http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/e_nobre/AUP274/plano_avenidas.jpg)
O rodoviarismo paulistano do século XX teve suas circunstâncias históricas que podemos estudar e compreender (mesmo que discordemos). Já a persistência dessa mentalidade nos dias de hoje é mais difícil de sustentar. Já se dispõe de evidências empíricas em bom número para justificar uma mudança de postura, e talvez o único entrave a isso seja uma espécie de condicionamento mental, um vício de pensamento que faz com que o enfrentamento do problema esbarre num temor quase intransponível. Assim, ao mesmo tempo em que as políticas públicas insistem em obras viárias que se tornam quase imediatamente obsoletas (como foi a infame duplicação da Marginal Tietê durante a gestão Serra), intervenções mais ousadas como a demolição do Elevado Costa e Silva (o "Minhocão") seguem adiadas indefinidamente. Mas talvez esteja chegando o momento em que a população da cidade conclua que não tem mais nada a perder (ou que, sendo impossível piorar, valha a pena correr o "risco" de melhorar). Num momento em que a locomoção por transporte público parece aos poucos ganhar a adesão das camadas mais abastadas da população de São Paulo (veja matéria a respeito aqui) - ainda que o restante da população, com mais crédito e renda, esteja adotando o velho padrão do transporte individual - talvez seja possível vislumbrar um futuro não mais tão distante em que as avenidas e os carros não dominem tão opressivamente nossa paisagem urbana.