quarta-feira, 18 de março de 2015

Quando a multidão não faz um coletivo

Desde o século XIX, pelo menos, muitos observadores da vida urbana começaram a notar e revelar o assombro diante de uma cena corriqueira mas nem por isso menos assutadora: a aglomeração humana nas grandes capitais - primeiramente na Europa: Londres e Paris - produzia a imagem assustadora da multidão, da massa, um aglomerado de gente que ocupava os espaços da cidade como um "monstro" de forma indefinida (representado comumente por seus milhares de olhos e incontáveis braços e pernas) e praticamente incontrolável. O medo da multidão realçava a preocupação com as aglomerações que adquiriam expressão política: as massas em fúria eram capazes de derrubar reis, assim mostrara a França revolucionária.

Curiosa e paradoxalmente, um fenômeno tão significativo e intrigante quanto aquele também se fazia notar: os indivíduos que perambulavam pela cidade podiam perfeitamente experimentar uma sensação de profundo isolamento e enorme solidão. Sim, mesmo estando em meio à multidão. A massa humana, ao mesmo tempo que proporcionava a sensação de força coletiva, também garantia anonimato. Aprendeu-se, desde então, que a multidão não basta para fazer uma coletividade. E uma aglomeração muito grande poderia, em certos casos, produzir o efeito contrário: exacerbar o isolamento.

O que faz da multidão um coletivo é, tomando as reflexões de Lewis Mumford, um aspecto particularmente importante da vida urbana e dos espaços públicos: o diálogo. Os mais significativos espaços públicos urbanos da História são, caracteristicamente, espaços de encontro e interação - de fala e intercâmbio. Estou aqui pensando em ágora ateniense, forum romano, feiras medievais, etc.

As recentes passeatas brasileiras me lembraram dessas discussões, tão caras à reflexão urbanística. Sob a perspectiva do diálogo que anima a vida política (e aqui, mais do que nunca, vale investir na aproximação entre a ideia de cidade como aglomerado e como organização de uma coletividade, tal qual na raiz grega), o que se viu foi uma multidão, mas não necessariamente um coletivo. Foi, primordialmente, uma passeata de indivíduos se expressando politicamente como tais - manifestação, portanto, de acentuado teor individualista.

Individualismo

Não pretendo, ao dizer isso, desqualificar a manifestação nem lhe negar legitimidade. Ao dizer que é individualista, não estou afirmando que seja carente de qualquer sentido de coletivo. O termo "individualista" aqui não é sinônimo de "egoísta". Apenas serve para pontuar o fato de que o sentido de coletivo que a grande passeata de 15 de março é derivada de uma projeção do individual. "Individualismo" aqui é, portanto, um modelo de pensamento que tem no indivíduo seu referencial essencial e fundante.

Vários aspectos do protesto permitem demonstrar essa afirmação. A começar pelo objeto do protesto, o elemento que levou todas as pessoas às ruas: a oposição a um governo e um partido se cristalizou na oposição à figura (individual) de Dilma Rousseff. O mote do protesto, a corrupção, é percebida como a conduta desviante dos indivíduos em cargos públicos. A própria corrupção é, em si, um julgamento moral (individual), não político (coletivo): não era o projeto de reforma política que estava em questão, nem de fato a condução da economia, ainda que esses tenham fornecido motivação ao acontecimento. Era o comportamento de determinadas figuras públicas (poupando outras, diga-se de passagem): a questão, embora retratada como "sistêmica", não é enfrentada como sistema, mas como uma possibilidade de, trocando certas "peças", resolver o problema todo.

Uma outra dimensão desse individualismo é a dificuldade de mediação entre o particular e o universal. Passava-se rapidamente do "eu" para o "todos", sem estágios intermediários. Nas centenas de milhares de pessoas que protestaram no dia 15 de março, haviam proposições políticas muito diversas, que iam desde a defesa de uma reforma política, passando pelo impeachment, até os pedidos de golpe militar. Essa diferença seria profunda demais para unificar todos em uma única manifestação, exceto pelo fato de que os grupos diluíram suas próprias identidades em um discurso unificador da "defesa do país". Mesmo a acusação de corrupção não tem mediações: não há grupos de interesse, não há classes ou frações de classe: ou são pessoas corruptas ou são "todos corruptos".

Considerando que o país não está em guerra e nem sob ameaça de invasão, essa é uma identidade que faz pouco sentido, a não ser pelo fato de servir para apagar diferenças importantes. E para fabricar um inimigo: quem não apoiou essa manifestação era "contra o Brasil", ou era necessariamente a favor da corrupção ou do governo.

A falta de mediações explica porque é tão difícil argumentar que um governo pode ser alvo de críticas (e muitas) mas, assim mesmo, merecer o apoio em certo nível. E como a explicação tem que partir sempre do ponto de referência posto no indivíduo, esse apoio precisa ser explicado no nível individual: só apoia o governo quem "recebe bolsa", "participa de algum esquema", e a manifestação em apoio ao governo só é possível porque esses "receberam sanduíche e 35 reais".

Empreendedorismo

Infelizmente, as análises que vi pouco avançam no sentido de entender as raízes desse individualismo, e limitam-se a condená-lo (quem o critica) ou justificá-lo (quem o apoia). Proponho uma tentativa de entender esse fenômeno a partir da experiência histórica da redemocratização brasileira. Com isso, espero tentar escapar da estereotipia apressada, que tenta ver os manifestantes como simplesmente "fascistas", "golpistas" ou como uma "elite branca".

A história que quero contar aqui começa com a crise econômica brasileira do início dos anos 1980 - que coincidiu com a reabertura política. Recessão, desemprego e, em seguida, inflação. A maioria dos manifestantes de agora nasceu em torno dessa época, ou foi criado nela, e alguns passaram de fato por ela (nossos pais, por exemplo). Lembro de ter visto em algum lugar alguém que se referia a essa geração como a "geração do medo": medo do desemprego, medo de passar fome ou privações sérias, medo da violência e da criminalidade (que cresceram desde então - isso é outra discussão). Justificado ou não, o medo gera como reação a autodefesa. Alguns diriam, "instinto de sobrevivência". Na década seguinte, o controle da hiperinflação dos anos 80 resultou em ainda mais desemprego e, com a abertura econômica às importações e o "ajuste" neoliberal, muitos e muitos empregos foram extintos em nome de uma "flexibilização" das relações trabalhistas, das "terceirizações" (pessoas antigamente empregadas foram forçadas a constituir pequenas empresas e se tornarem "fornecedores", prestadores de serviço sujeitos às regras da concorrência comercial).

Enquanto o ajuste se processava, a imprensa, os "especialistas", a publicidade e até meios de comunicação "neutos" como as novelas, os quadrinhos ou o cinema se uniram na unificação de um discurso segundo o qual o melhor era que cada um fosse patrão de si mesmo, que o emprego estava fadado ao desaparecimento, e que portanto era fundamental que cada pessoa se tornasse um "empreendedor". O sucesso profissional é a medida da realização pessoal, e ele é resultado do esforço, empenho e mérito individuais ("Você S. A."...). Num ambiente economicamente hostil, as relações trabalhistas se organizaram em torno da disputa e da competição.

Nesse ambiente, a economia "terciarizada" (comércio e serviços) se sobrepôs à economia industrial, e assim também se enfraqueceu o modelo de organização do trabalho (e dos trabalhadores) característico dessa economia em crise. Os sindicatos perderam muito de seu poder de mobilização e pressão, e imensas parcelas dos novos trabalhadores se envolveram com ocupações novas, pouco ou mal regulamentadas, e com baixíssima sindicalização. Entre os extremos do "capital" e do "trabalho", formalmente organizados, articulados e representados nos partidos que emergiram da redemocratização (e que se cristalizaram na dicotomia PSDB x PT) formou-se uma imensa massa de trabalhadores que não se reconhecem como "proletários" ou "campesinos" e não partilham da experiência desses de solidariedade e representações coletivas em uma disputa política. E, embora também não sejam propriamente uma elite, alinharam-se ao discurso do "empreendedorismo" pessoal na esperança de alcançar a realização prometida. E não é mentira que muitos tenham conseguido.

Essa é a "classe média" que se manifestou no domingo 15/03 e hostilizou (e foi hostilizada por) pessoas que permaneceram alinhadas ao modelo de organização política herdada dos sindicatos. Essa "classe média" cresceu muito e foi amplamente favorecida pelas políticas inclusivas dos governos petistas, mas nem por isso se vê como resultado dessas políticas - e sim do esforço individual, de sua capacidade empreendedora. De seu "mérito", em resumo. O governo petista, entretanto, parece não ter sido capaz de perceber que, para essa parcela da população, o modelo de engajamento de tipo sindical (ou de movimentos sociais como MST/MTST ou os "conselhos populares") simplesmente não fazem sentido. A inclusão de uma parcela cada vez maior da população nessa classe média, em lugar de aumentar, fez diminuir a adesão às formas de organização social sindicalista. Talvez a única forma de articulação social que cresceu nesse período foi a de inspiração religiosa. Foi ela que permitiu a única mediação entre o individual (amplamente incentivado por essas igrejas) e o universal (ou nacional), propondo a mediação do "cristão", por exemplo. Daí a representatividade desproporcional, em relação ao total da população que os religiosos alcançaram no poder Legislativo.

Individualismo como ação política

Essa experiência histórica ajuda a compreender a adesão de parcelas tão vastas (e cada vez maiores) da população a um modelo de ativismo político a que as instituições mediadoras atuais já não respondem, sejam os sindicatos, sejam os partidos. E é possível que boa parte da oposição ao PT seja uma recusa do modelo de organização política que ele parece privilegiar: um reformismo inclusivo social e economicamente (e, sim, isso ainda se mantém), mas que não foi capaz de responder à ideologia do "empreendedorismo" individualista, por se manter fiel ao modelo de articulação sindical e a uma noção de coletivo baseada na partilha das experiências trabalhadoras do industrialismo. Não quero aqui julgar que posição está correta ou dizer que a proposta petista está "superada", "esgotada" ou "falida". Mas é preciso apontar para o fato de que as profundas mudanças na sociedade nos últimos 10 a 20 anos resultaram numa nova demanda para as articulações políticas. É preciso dialogar com mais proximidade e abertura com esses grupos sociais que não sabem, não conhecem e não demonstram particular inclinação para a organização coletiva de tipo sindical. E, que, no entanto, parece muito disposta a se engajar, sim. Ainda que de forma efêmera (em flashmobs) e sem "perturbar a ordem": as passeatas de domingo, horário de folga, parecem fazer muito mais sentido do que as de semana, que "atrapalham". Talvez porque o parâmetro individualista ensine que o importante é agir (se manifestar) e não necessariamente atingir (incomodar). Mas quem pode negar que, mesmo com motivações e por meios individualistas foi possível lograr uma grande mobilização, e esta se tornou um fato político absolutamente relevante? O difícil, portanto, não é reunir um milhão de pessoas (que seja: não vou entrar nessa briga de números neste momento). Há anos a "Marcha de Deus" e a "Parada LGBT" também o conseguem. O desafio é que essa "massa" transforme uma miríade de reivindicações diversas (e nem sempre coerentes) num discurso coeso e numa pauta concreta. Isso pode ocorrer (e, infelizmente para a esquerda, a destituição do governo petista parece se tornar esse discurso e essa pauta). Até porque, como ensinou o historiador E. P. Thompson, minorias articuladas emergem de dentro de maiorias inarticuladas (não o inverso, como acreditava o velho PC e, aparentemente, a cúpula do PT). Ao que parece, não é um movimento pequeno que se massifica: é uma ideia difusa que vai, pouco a pouco, mobilizando cada vez mais.

Daí que a disputa pela "ideia difusa" se torna importante. E neste sentido, as mídias têm sido espetacularmente bem sucedidas em promover a difusão de um "pensamento único", de um modelo de vida que se baseia no individualismo, no empreendedorismo competitivo - a tal ponto que as pessoas que aderem a esses valores chegam a perder a capacidade de vislumbrar outras possibilidades. Mas esse êxito não decorre apenas da ação dessas mídias: não acredito em mera doutrinação. Ela se vale da experiência de vida das pessoas, que parece corroborar agora o descontentamento com o governo atual, da mesma forma como, antes, levava ao apoio a esse mesmo governo: não porque a massa tivesse se tornado um coletivo, mas porque os indivíduos viam seu próprio êxito.

quarta-feira, 4 de março de 2015

A capital do fusca amarelo

Num artigo publicado hoje no jornal O Estado de São Paulo, o publicitário Roberto Duailibi se queixa de São Paulo ter-se tornado a "capital do grafite". Em sua diatribe indisfarçavelmente antipetista, o empresário se queixa da qualidade duvidosa dos grafites, de seu impacto - a seu ver, negativo - na paisagem da cidade, e acusa o grafite de ser uma forma de expressão "fascista".
Considerando que o próprio Duailibi reconhece não ser um crítico de arte, coisa que também não sou, vou desconsiderar suas opiniões a respeito da estética do grafite. Há pessoas muito mais qualificadas do que eu para falar sobre isso, a começar pelos próprios artistas, que poderiam falar sobre o processo de seleção, sobre suas escolhas artísticas, entre outras coisas. Já que o publicitário demonstra total desinteresse em uma discussão fundamentada, acho improdutivo tentar informá-lo sobre essas coisas. Mas seria bastante saudável que alguém, mais ligado à área atacada por ele, se manifestasse nesses aspectos. 
Aliás, em se tratando de pessoas mais qualificadas para um debate sério sobre o grafite, poderíamos trazer para a cidade e ouvir autores internacionais que têm se dedicado ao estudo das chamadas "artes urbanas" (urban arts), das quais o grafite é um exemplo importante. Seria uma ótima oportunidade para ouvir pessoalmente autores como Louis Bou, Lyman Chaffee, Francesca Gavin, Christian Hundertmark, Rod Palmer, Allan Schwartzman, só para citar alguns exemplos.
Posso falar mais sobre a sensação do publicitário de que os grafites "invadiram a cidade". É fato que São Paulo há muito tem seus muros e empenas cegas preenchidas pelas cores do grafite. Talvez o publicitário não desse atenção antes, e porque chamaram-lhe atenção para isso (a histeria em torno dos grafites nos "Arcos do Jânio" em seu círculo social talvez tenha contribuído) agora lhe pareça que há muito mais grafite do que antes. Não: há anos São Paulo é uma cidade fartamente grafitada. Isso me lembra uma ocasião, na adolescência, em que eu e amigos fizemos uma aposta envolvendo o número de fuscas amarelos que encontrássemos (supunha-se que não encontraríamos 50 naquele dia). Bastaram poucos quilômetros andando pela cidade para alcançarmos o número improvável. Tivemos, naquele dia, a nítida impressão de que São Paulo havia sido tomada de fuscas amarelos. Eles sempre estiveram lá, nós é que passamos a prestar atenção.
Assim como grafites, poderíamos dizer que, recentemente, São Paulo foi tomada por pontos de ônibus de gosto duvidoso, completamente disfuncionais (a cobertura, originalmente transparente, teve que ser rapidamente substituída por outra que - incrível - oferecesse sombra aos usuários do transporte público). Não sou crítico de arte, mas o desenho parece não ajudar muito a tornar o ponto mais agradável a quem espera pelos ônibus, assim dizem os usuários. Segundo alguns, ele inclusive torna a área protegida mais quente...
Da mesma forma, as ruas de São Paulo foram "invadidas" por relógios de rua, com indicações de temperatura, eventualmente de qualidade do ar. O desenho é questionável, por que não? Mas eu não sou crítico de arte para julgar.
Mas tanto no caso dos pontos de ônibus quanto dos relógios, eu também não me lembro de ter havido uma consulta à população sobre qual desenho era melhor, onde eles deveriam ser implantados (por que não começar pelos bairros periféricos, que sempre são relegados e recebem os equipamentos de pior qualidade?). Nem por isso vou dizer que pontos de ônibus e relógios de rua sejam "fascistas", mas me surpreende que o publicitário não se preocupe com a estética urbana nesses casos. Talvez porque não use ônibus. Talvez porque tanto um quanto outro tenham espaços generosos para a... publicidade. Aliás, por que nos pontos há tanto espaço para anúncios e sequer uma relação das linhas que os atendem?
O problema todo, ao fim e ao cabo, é que o debate proposto por Duailibi se resume a acusar a prefeitura de prejudicar a paisagem urbana com o grafite. Mas para acreditar que o interesse em questão é mesmo a qualidade visual da cidade, eu teria que esquecer que, na época do prefeito Kassab (para que ninguém diga que estou aqui apenas defendendo a prefeitura petista) um dos segmentos que mais ferozmente se opôs à Lei Cidade Limpa e sua intenção de extinguir os outdoors foi precisamente o da propaganda e publicidade. Ao que parece, o problema não é de fato o que impacte a paisagem urbana, nem a falta de transparência nas decisões a respeito, mas apenas o fato de que isso seja feito sem beneficiá-lo de nenhuma forma.
De resto, São Paulo há muito é uma "capital do grafite", reconhecida internacionalmente. Que o digam artistas como Eduardo Kobra, Alexandre Orion ou Osgemeos. Suas obras são requisitadas em diversas outras cidades do mundo, e o interesse no grafite paulistano já suscitou até o desenvolvimento de roteiros e aplicativos para mapeamento dessas obras de arte. Prefiro conviver com o grafite do que com a publicidade no espaço urbano. Quem quiser comparar, veja as imagens:
Anúncios publicitários ao longo do Minhocão
Fonte: PubADdict
Painel de Eduardo Kobra em homenagem a Oscar Niemeyer, na avenida Paulista
Fonte: Uhull