sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Qual o melhor fim para o Minhocão?

[Prescrição ao leitor: este artigo não tem nenhuma pretensão acadêmica. É um texto de intervenção, uma opinião escrita. Muitos dos argumentos mereceriam maior desenvolvimento, e muitas afirmações deveriam ser acompanhadas de fontes e referências. Não o são porque isso tornaria o texto extenso demais para uma postagem de blog. Convido todos a deixarem seus comentários, e assim podemos levar a discussão adiante. Há muito o que debater, mas tenho muito mais a dizer em defesa do que proponho aqui do que permitiria este espaço.]
  1. Símbolo máximo do urbanismo rodoviarista de São Paulo (descontando-se o óbvio "Plano de Avenidas" de Prestes Maia, que de fato estabeleceu o modelo para tudo o que lhe seguiu), a via expressa denominada oficialmente Elevado Costa e Silva, ou simplesmente o "Minhocão", está com os dias contados. Pelo menos no que diz respeito à sua função original e primordial: o de servir de via expressa para os automóveis atravessarem a cidade de São Paulo entre as zonas Oeste e Leste, cruzando o Centro.
  2. Há muito tempo são conhecidos os impactos que a intervenção, executada pelo então prefeito Paulo Maluf (início dos anos 1970, auge dos "anos de chumbo" da ditadura civil-militar), provocou no entorno: depreciação dos imóveis lindeiros, esvaziamento da região, deterioração paisagística e aumento da insegurança embaixo do Elevado, em toda sua extensão. O ganho foi unicamente para o transporte automotivo individual (ônibus não circulam sobre o Minhocão). E, assim mesmo, essa única vantagem justificou sua permanência por quatro décadas: sabemos que os direitos dos automóveis são inquestionáveis nesta cidade.
  3. Eram. Nos últimos anos, a pressão de moradores dos prédios em volta do Minhocão garantiu-lhes o direito ao silêncio com a desativação do tráfego em horários de baixo fluxo: noites, fins de semana a partir de sábado à tarde... No mesmo contexto, cresceu uma articulação social em defesa de outros modos de transporte que não o automóvel particular: movimentos em defesa do transporte público, da bicicleta, entre os principais. E, há pouco mais de uma década, vem florescendo em São Paulo uma nova cultura que reivindica a recuperação e reocupação dos espaços públicos na cidade. Festividades de rua, desde o êxito da Virada Cultural até o crescimento dos desfiles de blocos de carnaval. A cidade parece desejar a retomada de espaços que haviam se convertido em áreas monofuncionais dedicadas apenas ao carro.
  4. É nesse quadro que ganha força a demanda pela desativação do Minhocão. No recém aprovado Plano Diretor, consta a diretriz de desativá-lo progressivamente, enquanto se decide sobre seu futuro. As alternativas postas: a demolição e a constituição de um parque suspenso, inspirado no High Line novaiorquino, ou na Promenade Plantée parisiense. Seria uma hipótese a ser avaliada, porém por razões ainda não muito claras, vem-se construindo um discurso que tenta fazer dessa possibilidade um consenso, uma unanimidade - que não existe, diga-se desde já. Políticos, empresários, ativistas, imprensa, subitamente se mostraram não apenas simpáticos à ideia de um parque suspenso no Minhocão, mas ativamente engajados em promover sua realização.
  5. A solução do parque esbarra em questões técnicas complicadas, a começar pelo próprio estado de deterioração da estrutura do Minhocão. Há quem diga que sua recuperação possa ser mais cara do que o também custoso processo de desmonte. Não seria um caso inédito: numerosos casos nos Estados Unidos (berço do rodoviarismo) têm demonstrado que o custo de manutenção dessas estruturas já é mais elevado do que sua demolição (e nem é preciso incluir nessa avaliação outras externalidades como a depreciação do valor imobiliário no seu entorno). Além disso, o projeto não resolve o problema urbanístico e social que é a área sob sua estrutura - escura, sufocada.
  6. Mas o mais estranho da maneira como o debate tem sido conduzido é a falsa polarização entre "progressistas" que desejam o parque e "retrógrados" que, supostamente, desejam que tudo permaneça como está. Sim, uma parcela ainda majoritária da população vê com desconfiança a desativação da via expressa e teme pelo impacto que isso terá no tráfego (ainda que, empiricamente, esteja-se demonstrando que muitas vezes o trânsito nas regiões restauradas até diminui). Mas opor-se ao parque não implica automaticamente defender o carro. Pelo contrário, clama-se pela remoção desta estrutura tão perniciosa para a cidade.
  7. Assim como se defende a realização de concursos de ideias para o parque (o que, a rigor, seria redundante, porque isso já foi feito), caberia igualmente um concurso de ideias para a resolução da paisagem urbana pós-Elevado naquela região. Se a demanda por um parque se mantiver, ele pode inclusive ser desenhado no lugar do Minhocão, e não sobre ele. Ideias há muitas, e gente competente para um projeto deste tipo não falta - aqui mesmo em São Paulo, para não dizer no resto do Brasil ou até internacionalmente, se isso for desejado.
  8. A proposta de um parque elevado só tem, de fato, uma vantagem real sobre todas as alternativas que requerem a demolição da via elevada: prazo. Sua implantação pode dar-se imediatamente, tão logo o tráfego de veículos seja interrompido. Isso é ótimo para quem já tem investido na área - aparentemente, o mercado imobiliário já está atento e atuante na área, e já se encontram anúncios de imóveis novos ou "retrofitados" que vendem a proximidade com o "futuro Parque Minhocão". É a esses interesses que serve a pressa em aprovar e implantar o parque suspenso. Os demais usuários das atividades de lazer no Minhocão estão sendo ludibriados com a ameaça de que, se isso não for feito, nada será. O imediatismo é uma vantagem para quem demonstra ceticismo em relação à nossa capacidade de realizar algo planejado em longo prazo.
  9. Mas será isso, de fato, uma vantagem? Não será, aqui, um caso do que a sabedoria popular define como "quem tem pressa come cru", ou "a pressa é inimiga da perfeição"? A melhor solução é preterida em favor da mais rápida? Em prol de uma solução imediata, perde-se a chance de realizar um projeto como São Paulo há muito não vê, algo capaz de reconfigurar a cidade, materializar novos paradigmas. Uma chance histórica que seria desperdiçada em favor de um arremedo, um remendo numa cicatriz que há muito sangra a cidade.
  10. "O parque já existe, só faltam as árvores", dizem. Não é verdade. Falta muito mais do que árvores: não há infraestrutura de apoio, não há pisos adequados, não há mobiliário... E tudo o que pode ser instalado ali caberia perfeitamente nos espaços livres que foram sacrificados ao carro com a construção do Minhocão.
  11. Por fim, há ainda os que defendem a demolição parcial. Que sobrevivessem trechos do Elevado para que se preservasse a "memória" desse equívoco. Como se isso fosse "ensinar" a população a não incorrer no mesmo erro outra vez. Mas que "memória" é essa que se quer preservar? Exemplos como os memoriais dedicados ao Holocausto ou aos regimes socialistas na Europa Oriental são sempre invocados, mas ao meu ver essa analogia é imprópria. O que é o Minhocão, senão apenas um equívoco urbanístico? A memória da ditadura está bem conservada em um museu como o Memorial da Resistência. A memória do rodoviarismo está mais que bem salvaguardada em todos os viadutos e avenidas de fundo de vale da cidade. A única coisa boa que o Elevado Costa e Silva produziu foi, de fato, sua alcunha. O "Parque Minhocão" não precisa ser suspenso, e se a população deseja um parque naquela região, que seja feito como se deve: no chão. 
  12. Respondendo, então, à questão proposta no título desta postagem, o melhor fim para o Minhocão é sua demolição integral, e a substituição da estrutura por uma ampla e profunda requalificação da área - das vias sob o Elevado, dos edifícios lindeiros, de todo o entorno imediato, e principalmente das áreas livres públicas (como a Praça Marechal Deodoro) que foram destruídas ou descaracterizadas pela estrutura suspensa. Restituir a cidade, retirar as sombras, respirar de novo: é isso que deve ser feito. O desejo já existe, só falta realizá-lo.

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