quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A Carta de São Paulo

No Simpósio 'Recursos Hídricos na Região Sudeste: Segurança Hídrica, Riscos, Impactos e Soluções', promovido pela Academia Brasileira de Ciências no Instituto de Botânica de São Paulo no final de novembro, foi elaborado o documento Carta de São Paulo, reproduzido a seguir. A carta procurou reunir as análises e recomendações fundamentais para enfrentar a crise hídrica atual e preparar o país para o que vem pela frente. Vale a pena a leitura

CARTA DE SÃO PAULO

Recursos hídricos no Sudeste: segurança, soluções, impactos e riscos

Sob os auspícios da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, 15 cientistas brasileiros de várias áreas - engenharia, ecologia, biologia aquática, climatologia, hidrologia e mudanças climáticas - especializados em recursos hídricos, reuniram-se nos dias 20 e 21 de novembro de 2014.
O encontro realizou-se no Instituto de Botânica da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e focalizou a apresentação de informações científicas, a análise de bases de dados e a discussão de soluções e alternativas para a crise hídrica no Sudeste do Brasil, além de considerar outros aspectos de relevância para a conservação e uso sustentável dos recursos hídricos como, por exemplo, sua biodiversidade, governança e a relevância dos serviços ambientais prestados pelos ecossistemas. O debate, bastante aprofundado, originou diversas constatações e recomendações.
Constatou-se que:

Há uma ameaça real à segurança hídrica no Sudeste.

São fortíssimos os indícios de que há uma mudança climática em curso, evidenciada pelas análises de séries históricas de dados climáticos e hidrológicos e projeções de modelos climáticos, com consequências na reservação de água e em todo o planejamento da gestão dos recursos hídricos. Estas mudanças climáticas não são apenas pontuais. Há indicações e fatos que apontam para sua possível continuidade, configurando uma ameaça à segurança hídrica da população da região Sudeste, especialmente da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), do interior de Minas Gerais e do Estado do Rio de Janeiro, de modo que todos devem estar preparados para eventos climáticos, cada vez mais extremos.
Os dados apresentados mostram que os sistemas produtores de água - principalmente na Região da Macrometrópole Paulista - não dispõem de capacidade suficiente para garantir as vazões necessárias ao atendimento da demanda atual e projetada, em especial de abastecimento público. Os sistemas de abastecimento foram projetados para dar garantia de 95% no suprimento de água. Esta garantia mostrou-se frágil face à severidade dos recentes eventos extremos de seca, indicando a necessidade de melhoria da segurança hídrica, especialmente em face de situações climáticas desfavoráveis.
Em médio e longo prazo esta situação se complica ainda mais, uma vez que as demandas tendem ainda a crescer. É evidente a necessidade de obras para aumentar a capacidade de reservação e distribuição dos sistemas, obras estas que levarão um tempo considerável para serem concluídas.
Este risco aumentado de escassez hídrica já está afetando a saúde pública, as economias local e regional, a produção de energia e de alimentos, a segurança coletiva das populações urbanas e rurais, ampliando de modo significativo a vulnerabilidade destas populações, os conflitos pelo uso da água e, portanto, o risco socioeconômico. Os impactos já identificados na produção de alimentos podem ter reflexo direto na economia brasileira, e é fundamental que haja uma reflexão sobre a mudança do modelo produtivo. Existem opções de produção de alimentos mais equilibradas e com importante economia de água, diminuindo a deficiência hídrica e reduzindo as perdas na agricultura por seca.

Ar, água e solo poluídos comprometem os usos múltiplos dos recursos hídricos

A crise hídrica, influenciada pelas alterações climáticas e hidrológicas, é agravada pelas mudanças no uso do solo, pela urbanização intensa, pelo desmatamento em regiões de mananciais e, principalmente, pela falta de saneamento básico e tratamento de esgotos, aumentando a vulnerabilidade da biota terrestre e aquática e das populações humanas.
A poluição das bacias hídricas é outro fator que agrava a escassez de água disponível nas cidades e acarreta problemas de saúde pública, com aumento de doenças diretamente relacionadas com a qualidade da água (doenças diarreicas agudas, parasitoses, doenças transmitidas por vetores aquáticos, doenças virais, doenças relacionadas a contaminantes químicos, tais como metais pesados, pesticidas, dioxinas).
O excesso de poluição impede a utilização da água e suas causas são relativamente bem conhecidas pelos gestores e pelas organizações que controlam e monitoram a qualidade da água, do ar e do solo. Em essência, temos limitada quantidade de água devido ao pouco cuidado com a qualidade.
Esta crise não afeta somente as populações humanas. Ela atinge os serviços dos ecossistemas, a biodiversidade aquática e compromete a sustentabilidade de rios, represas, lagos, áreas alagadas e águas subterrâneas, seja pela escassez de água ou pelo excesso de poluição. Episódios de infestações com espécies exóticas e aumento de toxicidade nos ecossistemas aquáticos, com comprometimento dos usos múltiplos dos recursos hídricos e consequente aumento de riscos à saúde pública têm sido recorrentes na RMSP, nas Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) e nos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Constatou-se também que, a menos que ocorram no mínimo 25% acima da média de chuvas previstas para este verão, a atual escassez não será minorada. Esta constatação torna-se mais expressiva quando se constata que as obras necessárias para aumentar a capacidade de reservação dependem de um longo tempo para serem implementadas, não constituindo, portanto, uma solução emergencial para a atual crise.
Assim, recomendamos às autoridades municipais, estaduais e federais as seguintes ações:

1. Modificações imediatas no sistema de governança de recursos hídricos

Temos um sistema fragmentado, em que muito se discute sobre "quem manda" no uso dos recursos hídricos e pouco se decide sobre o que fazer, muito menos sobre quem tem a responsabilidade de realizar o que quer que tenha sido decidido. O resultado é muita discussão e pouca ação. Quando todos são responsáveis, ninguém é responsável. Portanto, há necessidade de modificações abrangentes no sistema de governança dos recursos hídricos, uma vez que esta gestão não evoluiu satisfatoriamente para enfrentar a crise hídrica de forma interdisciplinar e sistêmica, bem como para assegurar o adequado controle quantitativo e qualitativo dos recursos hídricos, de forma integrada e indissociável.
Para enfrentar o principal problema, que é o abastecimento público, é absolutamente necessário e imprescindível modernizar e dinamizar os sistemas de gestão, evoluindo para o que tem sido denominado mais modernamente de governança da água para designar o conjunto de ações e níveis capaz de lidar com toda a complexidade e especificidades que requer o controle, proteção e uso sustentável dos recursos hídricos. Essa modernização deve garantir condições para a articulação e visão sistêmica de todos os órgãos responsáveis pela gestão, a compatibilização da demanda com a disponibilidade hídrica existente, possibilitando a solução de conflitos, estabelecendo mecanismos para resolver conflitos de uso (inclusive concessões e outorgas existentes), garantindo a proteção dos mananciais. Enfim, é fundamental criar estrutura para lidar com situações de emergência, dada a vulnerabilidade crescente das populações humanas e dos ecossistemas.
As alterações devem ser implantadas de forma a promover mudança da gestão setorial, de resposta e em nível local, para uma gestão preditiva, integrada e em nível de ecossistema (bacia hidrográfica), levando em conta os processos ecológicos, econômicos e sociais. A água deve ser reconhecida e gerenciada como bem social, de domínio público, devendo ser assegurado a todos, indistintamente, o acesso equitativo aos recursos hídricos, com segurança e qualidade.
Como se faz nos países avançados - Austrália e Oeste norte americano, por exemplo -, é preciso utilizar mecanismos econômicos para que, numa situação de crise, a água seja destinada prioritariamente para consumo humano (como determina a Lei 9433/97), com a devida compensação financeira para os setores da economia que, temporariamente, fiquem sem acesso pleno aos corpos hídricos (irrigação, por exemplo).

2. Implementação de planos de contingência

Dada a magnitude da atual crise hídrica e as graves consequências em todas as áreas e atividades da sociedade é urgente a imediata estruturação e implementação de plano de contingência e emergência, contemplando medidas e ações emergenciais equitativas, isto é, que atinjam todos os usuários da maneira mais uniforme possível. Deve ser assegurado ao público o direito de livre acesso à informação veraz, integral e atualizada.
O planejamento para a gestão e enfrentamento de eventos extremos (períodos de secas e enchentes) e falhas no sistema deve ser permanente, abrangente e prever um conjunto de ações para cada estado hidrológico e as respectivas responsabilidades, a fim de reduzir os impactos.
Em particular, a seca de 2014 revelou a necessidade de se ter um "plano B" para São Paulo. É preciso dotar a região metropolitana de infraestrutura para trazer água de algum manancial "reserva", que não seja usualmente utilizado para abastecimento público.

3. Uma drástica redução do consumo de água e outras medidas emergenciais para 2015

A estiagem de 2013/2014 foi de tal magnitude que comprometeu os níveis de armazenamento dos principais sistemas produtores de água da região. A probabilidade de que estes sistemas se recuperem ao longo de 2015 é muito baixa e não é razoável confiar apenas na "generosidade" da hidrologia ao longo deste ano. Todos anseiam por tal "generosidade", entretanto, é impositivo simular a ocorrência de cenários hidrológicos críticos e se preparar com antecedência para enfrentá-los.
Assim, é necessária a promoção de um conjunto de ações emergenciais para enfrentar a crise em 2015. É urgente e fundamental a adoção das medidas necessárias pelo Poder Público e órgãos gestores para a imediata redução do consumo de água (na indústria, agricultura e no abastecimento público), de forma compatível com a gravidade, a ordem de prioridade e extensão da crise hídrica, a fim de não acarretar colapso nos sistemas produtores de água.
O controle do uso de água e incentivos ampliados para redução da demanda, com acréscimos tarifários em casos de aumento de consumo, são fundamentais. Não basta premiar quem reduz o consumo. É preciso também punir quem aumenta o consumo, como foi feito no racionamento de energia de 2001, ou mesmo impor quotas, como foi feito em Barcelona.
Também devem ser incentivados, desenvolvidos e adotados tecnologias e equipamentos que propiciem o uso racional da água na indústria, na agricultura (processos menos dependentes de água, reutilização, reuso) e nos serviços de saneamento (controle de perdas, poupadores domésticos e não domésticos, reuso).
É necessária a mobilização urgente da população para obter resultados significativos na redução do consumo, acompanhada de processos e mecanismos de comunicação de massa que apresentem de forma clara a necessidade das ações adotadas e busque construir a parceria da população para o alcance das metas estabelecidas.
A promoção de um conjunto de ações emergenciais para enfrentar a crise em 2015 deve envolver, também, reforçar, apoiar e dar todas as condições para a participação ativa e mobilização dos comitês de bacias hidrográficas; a implantação de sistemas de reuso de água; a coleta e armazenamento de água de chuva; projetos de proteção de mananciais - devido ao importante papel da vegetação na recarga dos aquíferos e na manutenção de água de excelente qualidade -, com intenso reflorestamento de bacias hidrográficas, proteção e ampliação de florestas ripárias e proteção de áreas alagadas.
É preciso evitar, ainda, que os previsíveis temporais de verão desmobilizem a sociedade para a necessidade de economizar água, pelo menos enquanto o volume afluente não tiver magnitude suficiente para recuperar os reservatórios.

4. Investimento imediato em medidas de longo prazo

A perspectiva de recorrência de eventos extremos - como secas prolongadas alternadas com enchentes - e a insuficiência das estruturas hidráulicas existentes para atendimentos da crescente demanda por recursos hídricos na Região da Macrometrópole Paulista (tendência de mais 60m3/s até 2035), exigem visão de longo alcance, para reduzir o risco de vulnerabilidade social, econômica e ambiental.
Para enfrentar essas condições, faz-se urgente a implementação de novas fontes de suprimento hídrico e do aumento da capacidade de armazenamento de água bruta, em especial na RMSP e na Bacia do Piracicaba, sem prejuízo da adoção de outras importantes medidas, tais como o controle de perdas nos sistemas de abastecimento, a promoção do uso racional e ações de controle operacional sobre a demanda, a adoção de mecanismos efetivos para respeito aos limites da capacidade de suporte, levando-se em consideração as condições para uso e ocupação do solo e o desenvolvimento das tecnologias de reuso de água.
Além de exercer todas as ações necessárias à viabilidade técnica, financeira e administrativo-legal que asseguram a disponibilidade e a oferta de água para o atendimento da demanda com segurança, a gestão deve atuar regulatoriamente no estabelecimento dos valores máximos aceitáveis para a demanda.

5. Projetos de saneamento básico e tratamento de esgotos em nível nacional, estadual e municipal

É fundamental e estratégico para o país implantar projetos de saneamento básico, tratamento de esgotos e medir a eficiência desses processos. Um dos grandes problemas que atravanca o desenvolvimento sustentável do Brasil é a falta de saneamento básico e de tratamento de esgotos em grande parte dos municípios. Não basta, no entanto, construir redes de coleta de esgoto e as correspondentes estações de tratamento: é preciso que o sistema seja corretamente operado e que seja regularmente mantido, o que em geral não ocorre. É preciso destinar os recursos públicos para a subvenção de resultados (n metros cúbicos de esgotos efetivamente tratados) e não para a inauguração de obras, que demoram a serem concluídas e, quando prontas, funcionam precariamente por apenas alguns anos.
Esse problema crônico referente a saneamento básico e tratamento de esgotos tem reflexos altamente negativos na economia e na saúde pública. Está diretamente relacionado com a perda da qualidade da água de nossos mananciais, o que aumenta o risco e a vulnerabilidade das populações humanas e compromete ainda mais os efeitos da escassez hídrica.
Os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde e pelo IBGE(PNAD) deixam claro que avançamos muito mais na implantação de redes elétricas e de telefonia do que na implantação de redes coletoras de esgotos (diferença de mais de 30%); e mesmo nos municípios onde essa rede coletora atinge índices que, potencialmente, podem ser considerados satisfatórios, verifica-se que o efetivo tratamento dos efluentes se dá de forma muito precária tendo, portanto, um efeito bastante reduzido na diminuição do impacto que o lançamento desses efluentes tem sobre os recursos hídricos.
Por outro lado, já está suficientemente comprovado que para cada real investido em saneamento básico se economiza pelo menos quatro reais em custos dos sistemas públicos de saúde, sem ainda considerar todos os demais ganhos socioeconômicos e ambientais. Dessa forma, são prementes ações que considerem o saneamento como investimento e não como despesa.

6. Monitoramento de quantidade e qualidade da água

A implantação de sistemas de monitoramento da quantidade e da qualidade da água, com integração de bancos de dados climáticos, hidrológicos, ecológicos e biológicos, com acompanhamento do grau de ecotoxicidade, tem caráter estratégico para o Brasil - com reflexos regionais amplos.
O monitoramento deverá, dentre outras medidas, possibilitar a integração dos diversos sistemas de informações, com a disponibilização pública e gratuita dos dados e informações, inclusive no tocante ao monitoramento de séries históricas, com a definição de lacunas científicas.
Além do monitoramento quantitativo, emerge a necessidade de aprimoramento da metodologia de controle para a garantia da saúde pública e da qualidade ambiental, tais como monitoramento dos poluentes orgânicos persistentes (POPs), da toxicidade, com a previsão de ações correspondentes e respectivos responsáveis.
Somente através da integração e análise desses dados de forma multidisciplinar é que a eficiência de medidas preventivas e mitigadoras poderá ser atingida. É preciso fazer com que as informações sejam de mais fácil acesso para os estudiosos e para o público em geral.

7. Proteção, conservação e recuperação da biodiversidade

Para preservar serviços ecossistêmicos, proteger, conservar e recuperar a biodiversidade é fundamental. Deve ser dada prioridade ao tratamento e recuperação de áreas e águas poluídas, como a Represa Billings na RMSP, nas bacias críticas como a do Alto Tietê e do Piracicaba e outros cursos d'água em regiões com notória criticidade no balanço hídrico, aumentando a oferta de serviços e mantendo a sustentabilidade de rios, lagos, represas e áreas alagadas.

8. Reconhecimento público e conscientização social da amplitude da crise

O sistema público de governança de recursos hídricos necessita da participação e mobilização da sociedade para resolver conflitos, reduzir o consumo e apoiar ações de controle e gerenciamento integrado. É preciso reconhecer a importância deste apoio e compartilhamento para atender as demandas sociais, econômicas e ambientais da crise. É necessário reconhecer publicamente e divulgar amplamente que a crise hídrica não é somente de abastecimento público. Este é um dos componentes estratégicos da crise.
A situação crítica afeta a saúde pública, a produção de energia, a produção de alimentos e biocombustível, a geração de empregos,os serviços ecossistêmicos e a economia como um todo. Particularmente no Estado de São Paulo, já estão ocorrendo reflexos altamente negativos na hidrovia do Tietê-Paraná, na produção industrial, na agricultura e no abastecimento de municípios do interior, causando preocupação e instabilidade social, com episódios recorrentes das manifestações em determinadas regiões mais afetadas. Esta instabilidade social tende a se agravar com a continuidade da crise.

9. Ações de divulgação e informação de amplo espectro

As medidas emergenciais, os planos de longo prazo e a gravidade da crise necessitam da implantação de ações de divulgação e informação de amplo espectro, atingindo toda a sociedade - o setor público, o setor privado, as associações de classe e os diferentes usuários. Somente a transparência e a mobilização podem evitar uma maior instabilidade social, que corre o risco de acontecer se o abastecimento público continuar sendo drasticamente afetado, como indicamos dados científicos e as informações existentes.
A imprevisibilidade e incertezas associadas ao cenário de mudanças climáticas tornam prementes ações continuadas de divulgação, visando o entendimento de que a água é um bem social e finito. Sendo assim, seu uso sustentável depende de decisões fortemente embasadas em conhecimento científico, multidisciplinar, além de mudança de cultura em relação à sua utilização.

10. Capacitação de gestores com visão sistêmica e interdisciplinar

A educação e capacitação de gestores, no sentido de adquirirem e desenvolverem uma visão sistêmica e interdisciplinar e uma abordagem integrada na governança é outra medida de curto, médio e longo prazo que será fundamental e efetiva nas alterações necessárias da governança hídrica.


O grupo de estudos da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e seus colaboradores, abaixo assinados, colocam-se à disposição para esclarecimentos, aprofundamento da informação aqui apresentada e colaboração na elaboração das ações em todos os níveis.
São Paulo, 11 de dezembro de 2014.
Carlos Eduardo de Mattos Bicudo
Doutor em ciências biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), é pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo. Recebeu a Medalha de Mérito em Botânica Graziela Maciel Barroso pelos relevantes serviços prestados ao desenvolvimento da fitologia no Brasil. É membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Carlos Afonso Nobre
Doutor em meteorologia pelo Massachussets Institute of Technology (MIT/EUA). Pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), cedido ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Preside os Conselhos Diretores da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas (Rede CLIMA) e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Recebeu a Von Humboldt Medal da European Geophysical Union e a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico do Brasil. É membro titular da ABC.
Carlos Tucci
Engenheiro civil, doutorado em recursos hídricos pela Universidade do Estado do Colorado, nos Estados Unidos. É professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Feevale (RS). Recebeu o Prêmio Internacional de Hidrologia da Associação Internacional de Ciências Hidrológicas (IAHS, na sigla em inglês) da Unesco.
Danny Dalberson
Engenheiro civil e hidráulico, com mestrado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). É sócio-diretor da empresa Engecorps e professor de construções hidráulicas e gestão ambiental de obras hidráulicas da USP.
Eduardo Assad
Engenheiro agrícola, com doutorado em hidrologia e matemática pela Universidade Montpellier e especialização em sensoriamento remoto no Centro Nacional de Estudos Espaciais (CNES), ambos na França. É professor do curso de mestrado em agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Francisco Barbosa
Doutor em ecologia e recursos naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pós-doutorado em ecofisiologia de algas pelo Instituto de Ecologia de Água Doce (Inglaterra). É professor e coordenador do curso de especialização em Gerenciamento Municipal de Recursos Hídricos do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Jerson Kelman
Engenheiro civil, com doutorado em hidrologia e recursos hídricos pela Universidade do Estado do Colorado (EUA). Foi diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA). É professor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ).
José Galizia Tundisi
Mestre em oceanografia pela Universidade de Southampton (Reino Unido) e doutor em botânica pela USP. É professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Universidade Feevale e atua na pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSC). É presidente da Associação Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental (IIEGA) e pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia (IIE). É membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e coordenador do seu Grupo de Estudos sobre Recursos Hídricos.
José Marengo
Mestre em engenharia de recursos da água e da terra pela Universidade Nacional Agrária em Lima, no Peru, e doutor em meteorologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA). É pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI). É membro do comitê científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e da Academia Brasileira Ciências (ABC).
Luiz Pinguelli Rosa
Engenheiro nuclear, com doutorado em física pela PUC-Rio. Foi presidente da Eletrobras. Atua como secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. Participa do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). É diretor e professor titular do Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ. É membro titular da Academia Brasileira Ciências (ABC).
Marcelo Seluchi
Doutor em ciências meteorológicas pela Universidade de Buenos Aires (UBA). É chefe da Divisão de Operações do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI).
Monica Porto
Doutora em engenharia civil pela Universidade de São Paulo (USP). É diretora-presidente da Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH) e professora titular da Universidade de São Paulo (USP).
Nelson Luiz Rodrigues Nucci
Doutorado em engenharia hidráulica e sanitária pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Foi superintendente de Planejamento da Sanesp e superintendente de Planejamento de Saneamento e Recursos Hídricos na Emplasa. É diretor da JNS Engenharia, Consultoria e Gerenciamento Ltda.
Sandra Azevedo
Bióloga, com doutorado em ecologia e recursos naturais pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). É membro do comitê gestor do Instituto Nacional para Pesquisa Translacional de Saúde e Ambiente na região Amazônica (INPeTAm) e diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBCCF/UFRJ).
Sérgio Ayrimoraes Soares
Engenheiro civil, com mestrado em tecnologia ambiental pela Universidade de Brasília (UnB). É especialista em Recursos Hídricos da Agência Nacional de Águas (ANA), onde atua como superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos.
Virginia Ciminelli
Engenheira química, metalúrgica e de minas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutora em processamento mineral pela Universidade do Estado da Pennsylvania (EUA). É professora do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da UFMG. Coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Recursos Minerais, Água e Biodiversidade (INCT/Acqua). É membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Fonte: Academia Brasileira de Ciências (http://www.abc.org.br/article.php3?id_article=3758)
11/12/2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Urbanidade, civilidade, polidez

À primeira vista, o título e o conteúdo desta postagem não dizem respeito a Urbanismo ou Urbanização. Mas, olhando bem, todos os substantivos acima têm em sua raiz palavras greco-latinas que denominam cidade: urbes, cives, polis.
Urbanidade e civilidade têm como sinônimos afabilidade, amabilidade, delicadeza, fineza, cortesia. Destas, a última palavra dá a pista para investigar a origem dessa associação - a corte. Nos primórdios da modernidade, as cidades capitais dos recém-formados Estados nacionais eram também as sedes do poder político (palavra que também vem de polis, mas deixemos esse tema para outra ocasião). A distinção social característica da "sociedade de corte" estudada por Norbert Elias se caracterizava, entre outras coisas, na noção de que os membros da elite (ou seja, os "eleitos") possuíam certas qualidades que os diferenciavam do restante da população. Essas qualidades eram associadas a um grau superior de educação, cultura e desenvolvimento intelectual/espiritual (daí, evidentemente, material).
Seguindo as pistas de outro intelectual fundamental para esta sondagem, descobrimos com Raymond Williams que a noção de cultura (derivada de cultivo) leva ao mesmo caminho que a de polidez: uma pedra "polida" é uma pedra trabalhada, melhorada e refinada - retirada de seu estado bruto. Por analogia, uma pessoa polida é também aquela retirada do ambiente rude e selvagem da natureza e do campo, para se tornar refinada e mais desenvolvida - na cidade.
Urbanidade e polidez são duas palavras que associam a vida na cidade à vida aristocrática: a cidade ainda associada à corte, portanto uma conotação agudamente elitista da vida urbana. Representações da cidade que remetem à noção que Carl Schorske denominou "cidade como virtude".
A mudança de representação da cidade no imaginário ocidental (ou europeu) ocorre no contexto da Revolução Industrial e da massiva migração para as cidades de uma população rural, "rude" e "inculta" - e que, para piorar, não demorou para exigir direitos e protestar contra sua condição. A partir de então a cidade não é mais o lugar da virtude, mas o da massa, da violência, dos perigos, da "degradação" (estética, moral, sanitária...). A "cidade como vício", também nas palavras de Schorske.
Ao mesmo tempo que as qualidades morais da cidade são postas em questão, consolida-se a ideia de um modelo de organização política que também tem a cidade como ponto de partida (Atenas): a democracia. A moderna democracia da sociedade burguesa tem com a ateniense uma semelhança que talvez se limite ao nome: se a grega era uma forma de democracia direta, a moderna é representativa (criando um modelo que, talvez, esteja em questão nesta aurora do século XXI - outro tema a ser desenvolvido em momento oportuno); mas se o "cidadão" grego era o aristocrata ("demos" era o agrupamento celular constitutivo da sociedade, e o chefe do demos era o representante: daí "governo do demos", não muito corretamente traduzido como governo do povo), agora é cidadão qualquer nativo da nação, ao menos em possibilidade. Não é uma democracia para poucos, e sim para todos. É possível então pensar a cidade contemporânea como o lugar da civilidade, da urbanidade e da polidez, sendo também esperado que seja o lugar por excelência da vida democrática?
A questão pode facilmente ser desviada para um viés muito conservador ou reacionário, então é bom que se deixe claro: o que se espera debater aqui é a possibilidade de se transpor um debate sobre qualidades individuais (expressas nas palavras do título) em um sistema político, suprapessoal. 
Seria elitismo considerar que urbanidade, polidez, civilidade, são necessariamente qualidades restritas a um pequeno grupo e que ele, por isso, deveria decidir em nome do restante da coletividade. E seria igualmente elitista achar que uma suposta superioridade de formação ou "cultivo" fosse necessária para ser capaz de decidir. Porém, é uma reflexão instigante pensar na associação entre a vida coletiva e um rebatimento nos padrões pessoais, num momento em que a ideologia dominante ressalta apenas a via inversa (o coletivo como mera soma de vontades individuais); então "o todo sem a parte não é todo", mas também "a parte sem o todo não é parte", como escreveu Gregório de Matos. Dialética.
É preciso, talvez, que os participantes da cidade percebam-se integrantes de uma coletividade sobre a qual assumem certos compromissos. A condição para a democracia é o diálogo e este, sendo um embate entre ideias, proposições e argumentos, requer um compromisso entre os participantes de que a agressão pessoal esteja mantida do lado de fora - seja a ameaça verbal, o insulto, seja a própria agressão física.
Aí reside minha grande crítica à declaração de Bolsonaro e a todas as defesas que recebeu de seus apoiadores: de que ele teria "apenas reagido" a uma provocação anterior. Bem, se é isso, Bolsonaro demonstra não ter capacidade de restringir o debate aos limites de um confronto de ideias, não de pessoas. Ao se mostrar incapaz de respeitar um indivíduo que diverge dele, o deputado mostra que não é capaz de conviver com a diferença. E, ao dizer que não estupraria a deputada porque ela "não merece", abandona por completo a argumentação e parte para a invalidação pessoal. Sim, é verdade que ele fez apologia ao estupro. Basta trocar os sinais da frase: ele não estupra alguém porque não merece, portanto também estupraria porque merece (se não X implica não Y, então X implica Y. Lógica elementar). Mas o problema é ainda mais um: em que dizer que alguém "merece ser estuprada" valida ou invalida qualquer argumento político? Em nada, é apenas uma forma de dizer um sonoro "cale-se".
Portar-se desta forma "incivilizada", sem urbanidade ou polidez, é portanto uma forma de se mostrar indigno da democracia que deveria representar. De fato, a democracia não pressupõe a urbanidade, mas talvez a última qualifique muito mais a primeira. É um esforço que deveria valer a pena.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O direito de morar

Terça-feira, 16 de setembro de 2014. Mais uma vez, uma ação truculenta de reintegração de posse em São Paulo. Depoimentos e imagens dão ideia de um acontecimento dantesco - crianças, idosos, mães, perseguidos e aprisionados; passantes submetidos aos efeitos danosos dos gases de efeito moral; cerca de 200 famílias despejadas de um edifício que havia sido ocupado depois de dez anos de abandono. A opinião pública parece não se comover com a situação das famílias, e a violência estatal é aplaudida em programas televisivos, noticiários e nas redes sociais. A situação das famílias é ignorada, bastando que se lhes seja atribuída a pecha de "vagabundos", "desocupados" - ou, como tem estado em voga, "comunistas".
A ação da polícia não será comentada aqui, a não ser nesta sentença: foi uma ação brutal, desproporcional e indigna de um Estado democrático. Mas o que interessa aqui não é que esta ação tenha sido praticada, mas que seja tão amplamente aprovada. Para isso, quero destacar aqui quatro pontos e discutir a argumentação de quem se opõe aos movimentos de moradia e suas táticas de ocupações:
  1. Moradia é um direito. 
  2. Manter imóveis vagos não é.
  3. Não se "invade" a casa de ninguém: ocupa-se um imóvel que está abandonado.
  4. A impunidade estimula o crime. E não é às ocupações que eu me refiro.

Moradia é um direito

Comecemos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 (aliás, para quem insiste no discurso de "direitos humanos para humanos direitos", dá uma lidinha nessa declaração e tenta entender melhor do que se trata: link aqui). O Artigo XXV diz que 
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. [grifo meu]
Percebam que "toda pessoa" é incondicional. Não é "toda pessoa que trabalhe", ou "toda pessoa que possa pagar". É simplesmente toda pessoa, qualquer uma. A habitação é uma necessidade fundamental, e deve ser garantida a qualquer pessoa.

Agora a Constituição Federal:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Novamente, são direitos sociais. Generalizados e incondicionais.
Quem critica os movimentos de moradia porque reivindicam moradia "de graça", "sem precisar trabalhar", precisa entender melhor esses princípios. Qualquer pessoa tem direito a um lugar para morar. Ponto. Se ela não pode arcar com a aquisição de um imóvel próprio, se ela não pode arcar com o pagamento de um aluguel, ainda assim ela tem direito a um lugar para morar. Se não é por via do mercado que ela conseguirá isso, o Estado tem dever sim de lhe prover. Ninguém pode ser obrigado a morar na rua, em favelas ou em cortiços em função do que pode pagar.
Fiz questão de citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos para lembrar que isso não é uma invenção da lei brasileira, e não é coisa de comunista. É uma convenção das Nações Unidas. E, de fato, programas habitacionais públicos são uma realidade internacional: França, Inglaterra, EUA... uma rápida procura na internet pode confirmar isso.
Normalmente quem se "revolta" com essa condição ou adquiriu um imóvel ou é capaz de pagar um aluguel. Quando pergunta "trabalhar pra quê?" e diz que é mais "fácil" esperar que o governo lhe dê moradia, evidentemente não está falando de si. Essa pessoa não aceitaria morar nas habitações que são providas pelos programas governamentais: seriam "pequenas demais", "pobres demais", ou "longe demais". Pois bem, é isso que o Estado tem dever de oferecer: o mínimo indispensável para dignidade humana. Quer varanda gourmet? Quer quatro vagas na garagem? Um apartamento de 250 m² ? Morar na Vila Nova Conceição? Pois então pague por isso. Não é o governo que vai oferecer. Por que então se paga por moradia? Para ter acesso a imóveis maiores, melhores, mais bem localizados, o que seja. Os movimentos sociais lutam por condições mínimas. Ou alguém já viu esses movimentos reivindicando apartamentos luxuosos?
Esse mínimo é uma garantia de que alguém que, eventualmente, perca todos os seus recursos e a capacidade de manter um imóvel próprio ou alugado, ainda assim não seja condenado a ir viver na rua, por exemplo. Se essa possibilidade parece remota para nós, é porque a sociedade brasileira é de baixa mobilidade social (ricos permanecem ricos, pobres permanecem pobres), não porque o princípio de universalização da moradia não valha.
Então, alguém dirá que a reivindicação deveria se ater às demandas para o Estado, sem envolver propriedades particulares - ou seja, sem "invasões". Isso leva ao segundo ponto.


Manter imóveis vagos não é

Parece estranho para muita gente, mas o direito à propriedade não é um direito irrestrito.
Sim, a mesma Declaração citada acima diz que toda pessoa tem direito à propriedade. Mas não há uma hierarquia ou prevalência entre um direito e outro. Ou seja, em caso de conflito entre ambos, há que se buscar uma solução conciliadora, e não suprimir um direito em nome de outro.
A nossa Constituição, no mesmo Art. 5º que diz que "é garantido o direito de propriedade" diz, imediatamente a seguir, que "a propriedade atenderá a sua função social". Essa expressão ("função social da propriedade") aparece ainda nos artigos 182 e 183, que tratam especificamente da política urbana. O Artigo 182 diz o seguinte:
[...] § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
[...] § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Manter imóveis ociosos, portanto, fere o princípio da "função social da propriedade", definido na Constituição Federal (a "lei máxima" do país). A ocupação de um imóvel vago, desta forma, poderia ser justificada como uma atribuição de função social a uma propriedade que não a cumpre presentemente. Mas é claro que esse não é o entendimento que a Justiça dá correntemente. E, aparentemente para a maioria da opinião pública, trata-se de uma apropriação indevida. Uma "invasão". Os movimentos sociais preferem a palavra "ocupação". Qual a diferença?


Não se "invade" a casa de ninguém: ocupa-se um imóvel que está abandonado

Vamos ao dicionário. Segundo o dicionário Michaelis, ocupar significa apoderar-se de; tornar-se dono de; tomar posse de alguma coisa. Já invadir quer dizer entrar à força, assumir indevidamente ou por violência; usurpar. Ou seja, o segundo termo tem, em si, um juízo de valor ("indevidamente") que não está presente no primeiro. A ideia de que se tratam de "invasores" já denota, de antemão, que se julga a ação como indevida. E indevida porque se trataria de uma usurpação: a propriedade particular foi tomada por meio de uma ação que é externa à legalidade. O imóvel nem foi adquirido por compra, nem foi desapropriado pelo governo. Foi "tomado à força".
O argumento principal para esse juízo é a ameaça de generalização. Se for permitida a ocupação de um imóvel particular, logo serão invadidos todos ou quaisquer imóveis, indiscriminadamente. Ninguém mais estará seguro. Frequentemente se alega, de fato, que permitir a "invasão" de imóveis vagos dará início à invasão de casas plenamente habitadas e com uso.
Se alguém conhece algum caso desses, por favor me mostre, porque eu não conheço nenhum. O que sempre vi foi a ocupação de imóveis vazios, completamente desocupados, muitos dos quais inclusive em estágio de deterioração bastante avançada, e frequentemente com dívidas gigantescas junto às prefeituras (no mínimo). O que as ocupações normalmente procuram é, por uma ação contundente (alguns dirão: truculenta, ilegal), forçar o Estado a fazer o que já deveria ter feito: "exigir [...] do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento", como está dito na Constituição. E, enquanto isso não se realiza, as famílias ocupantes permanecem num local que, apenas por ter teto e paredes, pode ser melhor do que a situação de onde elas vieram.
Não há razão, portanto, para que ninguém tema ter sua casa "invadida". Não há nenhum caso desse tipo registrado, que eu tenha conhecimento. Mas se alguém possui um imóvel vazio, aguardando a valorização para revenda, ou uma oferta irrecusável de um investidor, ou a própria desapropriação (para se livrar dos impostos devidos ou da responsabilidade de manter o imóvel), bem... melhor começar a pensar no que fazer desse imóvel.


A impunidade estimula a ilegalidade. E não é às ocupações que eu me refiro

O último ponto que vou discutir aqui é essa ideia de que, se o governo atender às reivindicações dos movimentos populares, ele estará incentivando a ocorrência de novas "invasões" (ocupações). Bem, devo admitir que o argumento procede. Historicamente, o Estado permitiu, por exemplo, que extensas áreas da cidade fossem ocupadas, loteadas e revendidas de forma completamente irregular, sem passar pelos processos formais de aprovação, sem atender aos requisitos urbanísticos exigidos pela legislação em vigência. Posteriormente, esses loteamentos foram anistiados. O resultado, é claro, foi que mais loteamentos irregulares ocorreram.
De forma semelhante, há alguns anos em São Paulo, vários estabelecimentos comerciais de luxo se instalaram em vias que, de acordo com o zoneamento vigente, eram estritamente residenciais. Bem, após seguidas anistias e negociações, o zoneamento foi alterado para que a lei se adequasse à realidade (sim, nessa ordem).
Recentemente, foi noticiado (veja aqui) que diversos clubes, shopping centers, agências bancárias, e até mesmo a Associação Paulista de Magistrados ocupam áreas em São Paulo de forma irregular. Aqui também a inoperância do Estado, seja do Poder Executivo ou do Judiciário, tem contribuído para a generalização da prática irregular / ilegal. A relação entre impunidade e ilegalidade está presente em todas essas situações, da mesmíssima forma como a opinião pública vê a ocupação de imóveis ociosos. A novidade, neste último caso, é a velocidade com que se age para coibir a prática, e a violência aplicada nessa ação.
Podemos adotar a postura vingativa ("PM neles!"), ou tentar entender que há outras maneiras de lidar com os conflitos fundiários que não necessariamente impliquem no uso da violência por parte do aparelho estatal. Mais do que isso: esta é a maneira correta de lidar com o problema.
Se observarmos as normas dos vários organismos internacionais ou agências multilaterais, é possível observar que os casos de "reassentamento involuntário" (ou seja, a remoção de população de uma área para realização de um projeto de desenvolvimento - digamos, urbano/imobiliário) devem ser tratados sob a ótica dos direitos dos reassentados. O próprio Banco Mundial preconiza que, nesses casos, o reassentamento garanta aos atingidos condições iguais ou melhores do que a original. E isto tem justamente a finalidade de evitar o que temos testemunhado: que populações sejam simplesmente despejadas, sem opção. Bem, a política de "reassentamento involuntário" não se aplica totalmente ao caso aqui examinado, mas seus princípios norteadores servem como parâmetro: não se pode simplesmente retirar a população de um lugar que elas habitam (mesmo que provisoriamente; mesmo que de forma irregular ou ilegal) sem que lhes seja oferecida uma opção, igual a ou melhor do que aquela. E isto, simplesmente, porque a moradia é um direito fundamental, como já vimos.
Por que, então, esse direito continua sendo sistematicamente renegado à população pobre de São Paulo? Quem entendeu as ilegalidades acima é capaz de responder: assim como nas ocupações de imóveis vagos, assim como nos loteamentos clandestinos, no comércio irregular, nos terrenos irregularmente ocupados, a "impunidade" gera a ilegalidade.
Os governantes (seja do Executivo ou do Judiciário) agem desta forma com base na certeza absoluta de que nunca serão responsabilizados por essas arbitrariedades. Nenhum juiz será afastado ou denunciado; o governador será reeleito; a imprensa e seus leitores continuarão aplaudindo.
É preciso romper o círculo vicioso da impunidade, portanto. Mas não apenas a impunidade do crime cometido por quem não tem opção de moradia. Também a impunidade de quem desrespeita direitos fundamentais e se beneficia do aparato estatal para fazer valer interesses e direitos estritos, e em benefício de poucos.

terça-feira, 1 de julho de 2014

O Plano Diretor aprovado. E agora?

A aprovação da revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo foi alcançada nesta segunda-feira, 30 de junho, depois de muita discussão, audiências públicas e, claro, muita polêmica (clique aqui para o texto oficial publicado no Diário Oficial - página 92 e seguintes do caderno Cidades). É preciso, desde já, dizer que o município contar com um Plano Diretor é basicamente positivo. A velha crítica de que a cidade cresce de forma "desordenada" ou "caótica", sem plano, não tem qualquer fundamento: em lugar disso, devemos pensar a respeito de que "ordem" foi consagrada por esse plano tal qual foi aprovado, como esse plano será posto em prática, como assegurar que o plano não seja engavetado por qualquer outra administração que venha a suceder a gestão de Fernando Haddad.
Nesta postagem, não pretendo analisar o Plano em si: já existem outros textos bastante qualificados sobre o assunto, aos quais eu teria pouco a acrescentar. Sugiro ao leitor que leia os textos publicados por Raquel Rolnik (aqui) e João Sette Whitaker (aqui), para ficar com apenas alguns. Uma rápida busca pelos debates em editoriais de jornais também pode enriquecer o conhecimento a respeito do assunto. O que me interessa aqui é que, ao lado de comemorar a culminação de um longo processo que foi a elaboração do Plano, lembrar que um Plano Diretor não é um fim em si: é meio. Um processo ainda mais longo e difícil está apenas começando.
Há um ponto a ser celebrado no processo que acaba de ser concluído: a politização e participação na elaboração do Plano. Muitos criticam e criticaram (não sem alguma razão) o fato de que as discussões foram promovidas "a toque de caixa" pelo Poder Executivo, interessado em aprovar rapidamente o Plano (quero crer que para haver tempo hábil, ainda nesta gestão, de colocar algumas das diretrizes em prática ou concretizar algumas das suas propostas). De fato, definir o alcance possível de discussões públicas para uma cidade de dez milhões de habitantes é uma tarefa bastante difícil: muito improvável é que se conseguisse garantir a participação da maioria da população ao longo de todo o conjunto de audiências. Mas o fato de terem acontecido e o de não terem sido apenas reuniões pro forma (como haviam sido na tentativa de revisão do PDE pela gestão anterior) mostra que a prefeitura desejava de fato colocar sua proposta em discussão. Posteriormente, a Câmara seguiu pelo mesmo caminho, o que resultou em um período de nove meses de "gestação" do plano - o que não é pouco, na verdade.
As discussões se fizeram, além disso, por diversos meios além da convencional presença física nas audiências: assim, foram postas à disposição da população meios de apresentar sugestões e comentários por e-mail, pelo site Gestão Urbana SP, entre outras formaspermitindo que a população que não podia (ou mesmo que não tinha interesse) em participar diretamente da elaboração ou discussão, ainda assim pudesse apresentar sua contribuição. Fica a lição de um método que se mostrou eficiente em colher contribuições e fazer uso das ferramentas mais atuais da democracia digital.
Outra lição, entretanto, é que essa forma de participação, difusa e assistemática, não é suficiente para suplantar os interesses mais articulados e dominantes: estes ainda conseguiram ditar, em aspectos importantes, a configuração final do Plano, limitando possíveis conquistas - especialmente com relação ao "direito à moradia" e à "função social da propriedade". A disputa entre movimentos de moradia e representantes do setor imobiliário e da construção civil mostra que há ainda um longo caminho a percorrer até que consigamos de fato alcançar um plano que atenda ao interesse da população como um todo, e não dos setores que fazem do espaço urbano sua mercadoria.
Para que esses debates se ampliem e para que a população tenha voz e influência de fato, é fundamental que os termos do debate sejam muito mais assimilados por toda a população, de modo a que as discussões não se tornem assunto apenas de "especialistas". A cidade é do interesse de todos os que nela vivem, e cada cidadão tem, de forma articulada ou não, mais ou menos informada, seus desígnios e expectativas em relação ao que seria a boa cidade em que desejam viver. Há que ouvi-los, antes de tudo, independentemente da qualidade das propostas ou das críticas.
As diversas propostas constantes do plano devem ser detalhadas, ou executadas ao longo do tempo, ou ainda requerem outras regulamentações: após o Plano Diretor, virão outros vários instrumentos que conformam o arcabouço legal para o ordenamento territorial do município: Planos Regionais (os "Planos Diretores" de Subprefeituras, onde é possível detalhar e aprimorar propostas que, na escala da cidade como um todo, são tratadas mais genericamente) que poderiam chegar aos "Planos de Bairro" (em escala que permita, inclusive, "desenhar" soluções mais pontuais para os espaços urbanos; a Lei de Uso e Ocupação do Solo, conhecida como a lei de Zoneamento (aqui, espera-se a intensificação dos debates e das polêmicas, uma vez que se trata da lei que, essencialmente, direciona, limita e induz padrões e requisitos a serem atendidos pelos agentes construtores do espaço urbano, como os setores imobiliário, de construção civil, infraestruturas, etc.); espera-se também chegar à revisão do Código de Obras, que incide diretamente sobre as exigências de qualidade construtiva dos edifícios na cidade. Todas essas revisões demandarão, da mesma forma que no caso do Plano Diretor, numerosas consultas públicas, coleta de sugestões, enfim: demandarão ampla participação e engajamento. Portanto, é fundamental que não se perca o fôlego: há muito o que discutir, há muitas soluções para negociar.
Por fim, quando todas as revisões estiverem concluídas, é fundamental monitorar a realização das diretrizes estabelecidas, cobrar a realização das intervenções propostas... o Plano só tem sentido e valor quando se concretiza e muda, de fato, a realidade urbana. Por isso os prazos longos: neste caso, serão 16 anos para que se reverta a lógica atual da cidade excludente, insalubre e estressante. Não se espere a solução de todos os problemas, mas que também não se deixe levar pelo cinismo de achar que "nada mudará" ou "nada nunca muda", porque em 16 anos muita coisa pode, sim, ser feita.
Vamos comemorar uma conquista importante. O Plano Diretor era condição necessária para começarmos essa mudança na cidade. Mas, sabendo que é necessária mas não suficiente, continuemos alertas, presentes e ativos em todos os embates que virão pela frente.

sábado, 21 de junho de 2014

O medo do outro: proposta para dessensibilização


Um vídeo que tem circulado pelas redes sociais mostra supostos "VIPs" - ou como a matéria os chama, "yellow blocks" - que assistem a jogos da Copa do Mundo em espaços exclusivos e seletivos. A própria representação desse público pela matéria, e principalmente a repercussão que teve o vídeo, com acalorados defensores e detratores, mostra uma parcela da população brasileira em situação de completo isolamento em relação ao restante da sociedade brasileira. Isolamento autoimposto, voluntário, fundamentado na presunção de que, ao pagar mais por acesso a um espaço exclusivo, teria-se com isso acesso a um mundo de privilégios, conforto e segurança.
Seria fácil aproveitar este espaço aqui para, mais uma vez, repisar os argumentos e as críticas aos personagens da matéria: a visão social que demonstram em seus depoimentos, a desconexão com a realidade da maioria da população. Muitos já trataram de ridicularizar a postura dos "VIPs", outros tratam de defender a legitimidade de "ter mais quem paga mais". A mim interessa discutir uma questão anterior: o porquê do isolamento. E para isso quero evitar os argumentos naturalizantes - seja o de que a desigualdade é "da natureza humana" (e, portanto, cada um que procure a melhor colocação na parte desigualmente superior) ou que a "luta de classes" é perpétua. Para o bem da vida em coletividade e, mais ainda, para o bem das cidades brasileiras, há que se tentar entender as razões dessa tão forte tendência ao isolamento. A seguir, deve-se tentar propor uma possibilidade de sua superação, ou ao menos minimização. Em linhas gerais, para os mais impacientes: o isolamento vem do medo. A superação do medo poderia ser conseguida por uma técnica que, descobri há pouco tempo, é chamada de dessensibilização sistemática. Essa é usada para indivíduos: o que quero propor é um experimento coletivo de dessensibilização.

A cultura do medo

A declaração é explícita no vídeo em questão: a procura por um espaço de privilégio se deve, entre outras coisas (mas eu diria que principalmente), à percepção de que os eventos populares, coletivos, realizados em espaço público, são essencialmente perigosos: o risco de roubos e assaltos (crimes contra o patrimônio), ou de agressões físicas (crimes contra a vida).
É difícil mapear de onde vem essa ideia generalizada de que o espaço público é o lugar do crime e da violência. Mas diversos estudos têm mostrado que a percepção de violência é muito mais intensa do que a violência real. Ou seja: uma "faca no baço" (ou qualquer equivalente) é um evento bastante raro em aglomerações de população. Mas basta que uma agressão ocorra, a notícia corre rapidamente e passa a justificar o medo. Este se alimenta não da certeza, e sim da probabilidade - por menor que seja. Centenas de eventos pacíficos não são suficientes para dissipar o estigma do espaço público como essencialmente violento. Em contrapartida, um único evento negativo o confirma de forma duradoura.
É difícil argumentar contra motivações emocionais, e mais ainda com base em "dados" ou quaisquer elementos "objetivos" - rapidamente rechaçados com um "queria ver se fosse com você". Mas é mais fácil identificar quem se beneficia desta "cultura": certamente, quem lucra com a exploração dos espaços segregados (onde se pode cobrar muito mais por qualquer mercadoria), a indústria da "segurança" privada (individual, com carros, blindagem, câmeras de vigilância, armas, portões elétricos, etc.; ou coletiva: empresas de segurança, milícias, etc.). Não quero dizer com isso que esses beneficiados promovam a violência, mas é fácil admitir que, sendo beneficiários da cultura do medo, não tenham interesse em atenuá-la.
Vou admitir aqui, ainda que pense de forma diversa, que quem tem medo tenha razão para tê-lo. E vou admitir também que os que encontram na segregação a resposta para o medo não sejam pessoas essencialmente más ou estúpidas. Sem questionar frontalmente suas crenças, quero perguntar apenas o seguinte: o que se ganha com o medo? Muitas dessas pessoas já enfrentaram esta questão no âmbito individual: o que se ganha com a timidez? O que se ganha com o medo de pedir aumento, ou de empreender um negócio próprio, ou de planejar uma viagem, ou de pedir alguém em casamento? No curto prazo, talvez ofereça algum conforto e estabilidade. No longo prazo, porém, o medo é essencialmente limitador. Essa ideia, transposta para a vida urbana, mantém sua validade: o medo do espaço público (e do convívio com o público) é também, essencialmente, limitador. De quê? De experiência, de intercâmbio, até mesmo da possibilidade de festa... e de proteção. Muitos já disseram, junto com Jane Jacobs, que os espaços mais seguros da cidade são os que têm gente - múltiplos olhos que inibem a ação violenta ou criminosa, mesmo que de forma não deliberada.

Dessensibilização sistemática

O caminho para superação do medo passa, e não vejo outra maneira, por enfrentá-lo. Sim, enfrentar o medo, não o que o justifica. As razões para a violência real são múltiplas, complexas, e temos pouco o que fazer individualmente contra elas. Alguma precaução é necessária e inevitável. Para além disso, o que resta é dar a essa cautela salutar a dimensão real que ela requer.
Isto significa que é fundamental rever o preconceito segundo o qual toda experiência de espaço público e de convívio entre classes necessariamente resultará em choque, conflito e agressão (em "facada no baço"). Porém, a quebra deste preconceito não é e não deve ser um processo meramente racional. Por isso, não vou me estender aqui tentando "provar" que se trata realmente de um preconceito. Em lugar disso, proponho que se experimente a cidade. Encontre-a e absorva-a em seu repertório de experiência pessoal.
O processo de "dessensibilização" consiste em diminuir o medo progressivamente. E isso se dá passo a passo, com desafios mínimos sucessivos, a serem vencidos um por vez. Cada etapa deve ser profundamente assimilada, registrada (por escrito, se for preciso) antes de se seguir à próxima. E para isso, deve ser praticada repetidamente, até que o medo de realizá-la tenha diminuído sensivelmente ou desaparecido.
  1. O estágio inicial já está cumprido: é buscar espaços de convívio entre iguais, nos espaços devidamente protegidos e segregados (seja uma balada, um shopping center, ou outro qualquer).
  2. Buscar um evento coletivo em lugar não tão ostensivamente isolado, mas com alto grau de segregação contextual. Por exemplo, um pôr do sol nas praças do Alto de Pinheiros.
  3. Participar de um evento coletivo ao qual se pode chegar e sair de transporte individual.
  4. Participar de um evento coletivo em recinto fechado (portanto, com vigilância), ao qual seja necessário ou facilitado chegar por transporte coletivo. Pode ser na companhia de um subalterno (funcionário, empregado, prestador de serviços), se isso trouxer mais confiança.
  5. Participar de um evento coletivo com ampla divulgação, o que garantiria a presença de policiamento reforçado: por exemplo, a Virada Cultural.
  6. Comparecer a um pequeno evento público em local distante de sua residência: por exemplo, um sarau na periferia.
  7. Caminhar sozinho pelo Centro da cidade, durante o dia. Progressivamente, avançar para o final da tarde, até ser capaz de andar pelo Centro à noite. Sim, neste processo, você ganhará confiança, experiência, e saberá reconhecer os lugares mais e menos seguros, e verá que essa diferença existe: alguns riscos são desnecessários, outros são amplamente toleráveis e até compartilhados por outras tantas pessoas.
  8. Promover, você mesmo, um evento, onde a presença de estranhos seja admitida. Não admita a cobrança de ingresso, consumação mínima ou nada que o valha. Você controla o contexto, garante uma aglomeração pequena o suficiente para se assegurar que não ocorra um evento negativo.
Se você, leitor, é capaz de cumprir os oito passos, parabéns! As cidades são seu habitat. Se não consegue, não se preocupe: seu sentimento é amplamente compartilhado por muitos outros. Vocês podem combinar de fazer os testes juntos, compartilhar as experiências, dividir aflições. Será, inclusive, muito divertido. Longe de mim achar que isso é uma "solução para a violência". Mas a cidade será, certamente, mais e mais amigável, e nossos temores diminuirão consideravelmente.

terça-feira, 11 de março de 2014

Novas vias não aliviam o trânsito, só pioram

Talvez se possa dizer que o trânsito é hoje, em São Paulo e cada vez mais em outras grandes cidades brasileiras, uma das principais causas de desgaste físico e mental da população, além de prejuízos econômicos em função do tempo gasto em deslocamentos (ou na falta deles), poluição do ar, ruídos e tantos outros problemas.
O tão conhecido trânsito de São Paulo, avenida 23 de Maio. (Fonte da imagem: http://www.coletivoverde.com.br/wp-content/uploads/2012/04/congestionamento-sp.jpg)
Não é de hoje que se tem criticado, especialmente no meio acadêmico e técnico (urbanistas, engenheiros de trânsito e outros) a excessiva prioridade dada às obras viárias. Seja porque as grandes avenidas se mostraram, ao longo do século XX, urbanisticamente desastrosas (imponto rasgos à paisagem urbana e segregando suas áreas lindeiras), seja ainda porque, simplesmente, fracassaram em sua promessa original: ampliar a "vazão" do trânsito e lhe conferir maior velocidade, ou "fluidez".
O uso dessas expressões tomadas da hidráulica revela claramente o modelo que embasou esses projetos viários: o conjunto de veículos foi tomado como analogia de um fluido, um líquido, que corre por canais de drenagem que devem garantir a máxima vazão sob risco de entupimento e estagnação. Por mais que ainda se encontrem os que defendem esse ponto de vista, sua aplicação e a crença em sua veracidade tem raízes históricas muito mais "poéticas" do que propriamente técnicas. Como mostra Richard Sennett, a analogia dos sistemas viários com o sistema arterial do corpo humano está na raiz dessa concepção, e data ainda dos séculos XVII e XVIII. Essa concepção foi intensamente reforçada pelo sanitarismo do século XIX e início do XX, para o qual a velocidade de circulação era garantia de vitalidade urbana.
A circulação sanguínea descoberta por William Harvey serviu como modelo para a circulação de pessoas e veículos nas cidades. (Fonte da imagem: blog "Filosofia e Filosofias do Renascimento"). Vide também SENNETT, Richard. Carne de Pedra: O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2003.







Há quem diga, atualmente, que o modelo mais apropriado para a compreensão do trânsito seja outro fluido - não líquido, mas gasoso: ocupa-se todo o volume do recipiente, independentemente de suas dimensões. Nessa lógica, portanto, a expansão viária não resolve o problema, pois mais ruas e avenidas significariam somente mais veículos transitando. Pouco tempo é necessário para que uma via aberta para "desafogar" o trânsito esteja, ela também, "afogada". Pode-se discutir a validade de se conceber o trânsito a partir de analogias das ciências naturais (eu, pessoalmente, prefiro pensar que pessoas ativas e pensantes não agem como meras moléculas...), mas aparentemente a conclusão a que se chega a partir dessa nova premissa é verdadeira: mais ruas equivalem a mais trânsito, por paradoxal que possa parecer. E, uma vez que essas descobertas favorecem os argumentos a favor de outros modos de transporte - seja o transporte público de massa ou o individual não motorizado -, é entre os adeptos e defensores dessas outras modalidades que encontramos a maior parte da divulgação de estudos que embasam um novo posicionamento em relação à mobilidade urbana. Aqui são apresentados três desses estudos, dois deles disponíveis no site Bicycle Universe.
No primeiro deles (link aqui), argumenta-se que novas estradas causam dispersão da ocupação (desenvolvimento em áreas longe do centro da cidade), e os novos habitantes da periferia entopem as novas vias enquanto dirigem de e para o seu trabalho na cidade. A ocupação que se desenvolve ao longo de novas rodovias, enchendo-as com o novo tráfego, reduzem a sua capacidade de tirar o tráfego de outros estradas congestionadas. Além disso, a quantidade de alívio do congestionamento oferecido por novas estradas muitas vezes não equivale ao congestionamento causado pelos próprios projetos de construção de estradas. 
No mesmo website (link aqui) é mostrada uma reportagem de 1999 do jornal USA Today, segundo a qual alguns dos maiores e mais caros projetos de construção de estradas dos EUA economizariam aos motoristas apenas 30 segundos no trajeto quando estivessem concluídas. Afirma ainda que os motoristas perdem mais tempo em atrasos de obras rodoviárias do que economizariam em anos de condução nas vias. O argumento é que melhoria das estradas é compensado pelo aumento do volume de tráfego. São citados os seguintes casos:
  • Springfield: uma obra de 8 anos e custo de US$434 milhões causou aos motoristas atrasos de 30 minutos em cada viagem, em horário de rush, através da conexão conhecida como "Mixing Bowl" (que junta o tráfego de três estradas interestaduais). E, quando a obra estivesse pronta, estimava-se que os motoristas ganhariam cerca de meio minuto (!!!) em seu percurso.
  • Salt Lake City: uma obra de 4 anos e custo de US$1,6 bilhão em cerca de 25 km de uma estrada resultaria num ganho de velocidade média de 1,6 km/h.
  • Trenton: uma obra de 3 anos em uma rodovia estadual causaria um atraso acumulado de 250 horas aos motoristas.
No livro Suburban Nation: The Rise of Sprawl and the Decline of the American Dream (DUANY, Andres, PLATER-ZYBERK, Elizabeth e SPECK, Jeff. S/L: North Point Press, 2000, pp. 88-94.), também citado pelo Bicycle Universe (veja aqui), afirma-se que um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley abrangendo trinta condados da Califórnia entre 1973 e 1990 constatou que, para cada 10 por cento de aumento na capacidade de estrada, o tráfego aumentou 9 por cento dentro de quatro anos - ou seja, o benefício do aumento das vias foi praticamente anulado em muito pouco tempo, fenômeno que passou a ser conhecido como "trânsito induzido" (induced traffic). O mais interessante é que se constatou que a lógica também funciona ao inverso: quando a estrada de West Side de Nova York entrou em colapso em 1973, um estudo mostrou que 93 por cento das viagens de carro perdidas não reapareceram em outro lugar - as pessoas simplesmente pararam de dirigir. Um resultado semelhante seguiu a destruição da Embarcadero Freeway após o terremoto de 1989 em San Francisco. Um estudo britânico citado pelos autores teria descoberto que mudanças rodoviárias do centro tendem a impulsionar as economias locais, enquanto os novos caminhos levam ao aumento do desemprego urbano.
Demolição da Embarcadero Freeway. (Fonte da imagem: http://ww3.hdnux.com/photos/10/06/05/2122074/7/628x471.jpg)

Por fim, um artigo publicado na revista New Scientist (link aqui) afirma que o trânsito fluiria melhor nas cidades em que apenas um número limitado de caminhos levassem ao centro, de modo que, para evitar engarrafamentos, seria mais conveniente fechar do que abrir novas vias. Esta descoberta contra-intuitiva é defendida por Neil Johnson, Douglas e Ashton Timothy Jarrett, da Universidade de Oxford, Reino Unido, que desenvolveram um modelo de aproximação de uma rede urbana complexa com apenas um anel viário e uma série de vias arteriais que cruzam no centro. No experimento, observou-se como o tempo médio de deslocamentos mudava à medida que o número de vias aumentava: quando o modelo assumia que não havia congestionamento no centro, o tempo médio da viagem encurtava conforme o número de vias aumentava. Entretanto, quando os investigadores modificaram o modelo para atrasar qualquer percurso que passasse através do centro, os resultados mudaram: com um pequeno número de vias os trajetos inicialmente tornavam-se mais rápidos em estradas adicionadas à rede; para além de certo número de vias, entretanto, a adição de mais estradas aumentou o tempo médio de viagem.
Sabemos que, na história do urbanismo em São Paulo, muitas intervenções urbanas consistiram exatamente em buscar a resolução do congestionamento de áreas centrais por meio da abertura de novas vias, postura cujas expressões máximas são a declaração do presidente Washington Luís ("governar é abrir estradas") e, principalmente, o famoso "Plano de Avenidas" de Prestes Maia e Ulhoa Cintra.
A aposta rodoviarista do urbanismo paulistano: o Plano de Avenidas (1930) de Prestes Maia e Ulhoa Cintra. (Fonte da imagem: http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/e_nobre/AUP274/plano_avenidas.jpg)
O rodoviarismo paulistano do século XX teve suas circunstâncias históricas que podemos estudar e compreender (mesmo que discordemos). Já a persistência dessa mentalidade nos dias de hoje é mais difícil de sustentar. Já se dispõe de evidências empíricas em bom número para justificar uma mudança de postura, e talvez o único entrave a isso seja uma espécie de condicionamento mental, um vício de pensamento que faz com que o enfrentamento do problema esbarre num temor quase intransponível. Assim, ao mesmo tempo em que as políticas públicas insistem em obras viárias que se tornam quase imediatamente obsoletas (como foi a infame duplicação da Marginal Tietê durante a gestão Serra), intervenções mais ousadas como a demolição do Elevado Costa e Silva (o "Minhocão") seguem adiadas indefinidamente. Mas talvez esteja chegando o momento em que a população da cidade conclua que não tem mais nada a perder (ou que, sendo impossível piorar, valha a pena correr o "risco" de melhorar). Num momento em que a locomoção por transporte público parece aos poucos ganhar a adesão das camadas mais abastadas da população de São Paulo (veja matéria a respeito aqui) - ainda que o restante da população, com mais crédito e renda, esteja adotando o velho padrão do transporte individual - talvez seja possível vislumbrar um futuro não mais tão distante em que as avenidas e os carros não dominem tão opressivamente nossa paisagem urbana.