terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Urbanidade, civilidade, polidez

À primeira vista, o título e o conteúdo desta postagem não dizem respeito a Urbanismo ou Urbanização. Mas, olhando bem, todos os substantivos acima têm em sua raiz palavras greco-latinas que denominam cidade: urbes, cives, polis.
Urbanidade e civilidade têm como sinônimos afabilidade, amabilidade, delicadeza, fineza, cortesia. Destas, a última palavra dá a pista para investigar a origem dessa associação - a corte. Nos primórdios da modernidade, as cidades capitais dos recém-formados Estados nacionais eram também as sedes do poder político (palavra que também vem de polis, mas deixemos esse tema para outra ocasião). A distinção social característica da "sociedade de corte" estudada por Norbert Elias se caracterizava, entre outras coisas, na noção de que os membros da elite (ou seja, os "eleitos") possuíam certas qualidades que os diferenciavam do restante da população. Essas qualidades eram associadas a um grau superior de educação, cultura e desenvolvimento intelectual/espiritual (daí, evidentemente, material).
Seguindo as pistas de outro intelectual fundamental para esta sondagem, descobrimos com Raymond Williams que a noção de cultura (derivada de cultivo) leva ao mesmo caminho que a de polidez: uma pedra "polida" é uma pedra trabalhada, melhorada e refinada - retirada de seu estado bruto. Por analogia, uma pessoa polida é também aquela retirada do ambiente rude e selvagem da natureza e do campo, para se tornar refinada e mais desenvolvida - na cidade.
Urbanidade e polidez são duas palavras que associam a vida na cidade à vida aristocrática: a cidade ainda associada à corte, portanto uma conotação agudamente elitista da vida urbana. Representações da cidade que remetem à noção que Carl Schorske denominou "cidade como virtude".
A mudança de representação da cidade no imaginário ocidental (ou europeu) ocorre no contexto da Revolução Industrial e da massiva migração para as cidades de uma população rural, "rude" e "inculta" - e que, para piorar, não demorou para exigir direitos e protestar contra sua condição. A partir de então a cidade não é mais o lugar da virtude, mas o da massa, da violência, dos perigos, da "degradação" (estética, moral, sanitária...). A "cidade como vício", também nas palavras de Schorske.
Ao mesmo tempo que as qualidades morais da cidade são postas em questão, consolida-se a ideia de um modelo de organização política que também tem a cidade como ponto de partida (Atenas): a democracia. A moderna democracia da sociedade burguesa tem com a ateniense uma semelhança que talvez se limite ao nome: se a grega era uma forma de democracia direta, a moderna é representativa (criando um modelo que, talvez, esteja em questão nesta aurora do século XXI - outro tema a ser desenvolvido em momento oportuno); mas se o "cidadão" grego era o aristocrata ("demos" era o agrupamento celular constitutivo da sociedade, e o chefe do demos era o representante: daí "governo do demos", não muito corretamente traduzido como governo do povo), agora é cidadão qualquer nativo da nação, ao menos em possibilidade. Não é uma democracia para poucos, e sim para todos. É possível então pensar a cidade contemporânea como o lugar da civilidade, da urbanidade e da polidez, sendo também esperado que seja o lugar por excelência da vida democrática?
A questão pode facilmente ser desviada para um viés muito conservador ou reacionário, então é bom que se deixe claro: o que se espera debater aqui é a possibilidade de se transpor um debate sobre qualidades individuais (expressas nas palavras do título) em um sistema político, suprapessoal. 
Seria elitismo considerar que urbanidade, polidez, civilidade, são necessariamente qualidades restritas a um pequeno grupo e que ele, por isso, deveria decidir em nome do restante da coletividade. E seria igualmente elitista achar que uma suposta superioridade de formação ou "cultivo" fosse necessária para ser capaz de decidir. Porém, é uma reflexão instigante pensar na associação entre a vida coletiva e um rebatimento nos padrões pessoais, num momento em que a ideologia dominante ressalta apenas a via inversa (o coletivo como mera soma de vontades individuais); então "o todo sem a parte não é todo", mas também "a parte sem o todo não é parte", como escreveu Gregório de Matos. Dialética.
É preciso, talvez, que os participantes da cidade percebam-se integrantes de uma coletividade sobre a qual assumem certos compromissos. A condição para a democracia é o diálogo e este, sendo um embate entre ideias, proposições e argumentos, requer um compromisso entre os participantes de que a agressão pessoal esteja mantida do lado de fora - seja a ameaça verbal, o insulto, seja a própria agressão física.
Aí reside minha grande crítica à declaração de Bolsonaro e a todas as defesas que recebeu de seus apoiadores: de que ele teria "apenas reagido" a uma provocação anterior. Bem, se é isso, Bolsonaro demonstra não ter capacidade de restringir o debate aos limites de um confronto de ideias, não de pessoas. Ao se mostrar incapaz de respeitar um indivíduo que diverge dele, o deputado mostra que não é capaz de conviver com a diferença. E, ao dizer que não estupraria a deputada porque ela "não merece", abandona por completo a argumentação e parte para a invalidação pessoal. Sim, é verdade que ele fez apologia ao estupro. Basta trocar os sinais da frase: ele não estupra alguém porque não merece, portanto também estupraria porque merece (se não X implica não Y, então X implica Y. Lógica elementar). Mas o problema é ainda mais um: em que dizer que alguém "merece ser estuprada" valida ou invalida qualquer argumento político? Em nada, é apenas uma forma de dizer um sonoro "cale-se".
Portar-se desta forma "incivilizada", sem urbanidade ou polidez, é portanto uma forma de se mostrar indigno da democracia que deveria representar. De fato, a democracia não pressupõe a urbanidade, mas talvez a última qualifique muito mais a primeira. É um esforço que deveria valer a pena.

Nenhum comentário: