quarta-feira, 10 de abril de 2013

Desabrigados

Faz tempo que os posts com a etiqueta "Trilha sonora" estavam sumidos. Resolvi retomar os escritos a relação música e cidade a partir de uma canção de Paul Simon que me impressionou desde que a ouvi pela primeira vez, com uns 10 anos de idade.
A canção é "Homeless", do álbum Graceland, lançado em 1986:
Contextualizando a canção: no que diz respeito ao artista, Paul Simon é o compositor e letrista conhecido desde os anos 1960 pela dupla com Art Garfunkel. Após o fim da dupla nos anos 70, Simon passa por um período de certo "ostracismo", mas sem deixar de produzir. O álbum Graceland o traz de volta ao primeiro plano da cena pop internacional, graças ao grande impacto causado pelo disco, em geral, e por esta música especificamente. O impacto é explicado, em grande parte, por ter sido um disco produzido em colaboração estreita com diversos músicos (grupos vocais e instrumentistas) sulafricanos, numa época em que se havia declarado um boicote internacional à África do Sul em oposição ao regime do apartheid e à continuidade da prisão de Nelson Mandela. Vários outros artistas se manifestaram a favor de Mandela, como o grupo Simple Minds, por exemplo.

Era um momento em que vários artistas se "engajaram" em campanhas humanitárias, fazendo músicas de "protesto" contra as opressões, a falta de democracia, etc. Campanhas como o Live Aid, USA for Africa (fiquem tranquilos, vou poupá-los de ouvir "We are the world" de novo, mas já deu pra entender o clima, né?) e tantas outras, encampadas por artistas do mais alto mainstream da música pop internacional (ou seria melhor dizer angloamericana?). Nesse contexto, o disco de Simon foi acusado de "trair" o boicote.
Seria fácil defender a atitude de Simon em termos como "à arte tudo é permitido", mas não acho que seja esta a abordagem mais útil. É evidente que Simon não se alinhou ao apartheid, e ao buscar os artistas negros sulafricanos e produzir um disco em que a sonoridade deles se destaca da maneira como ocorre aqui é quase como um recado: "a África do Sul é muito mais do que um regime segregacionista". Bem, afinal de contas, Mandela era quem mesmo?
Por outro lado, os anos 80 foram também um período de florescimento da chamada "World Music", quando artistas anglo-saxões produziram ou se envolveram em projetos musicais com o "terceiro mundo". Dá para lembrar ainda o envolvimento de Sting com a Amazônia, David Byrne com o samba brasileiro, Dead Can Dance explorando as sonoridades árabes e depois caribenhas... Sem falar nas coleções de músicas de países exóticos, como a recente série Putumayo. Mas Simon poderia (mas não deve) ser visto como um artista pegando carona nesta moda. Digo "não deve" porque suas pesquisas musicais são muito anteriores a essa moda - na verdade, ele seria talvez um verdadeiro precursor, desde os tempos de Simon & Garfunkel, como na versão que fizeram de El Condor Pasa e que ajudou a popularizar a música andina:



O conteúdo ideológico da "world music" é controverso, podendo ser associado a uma nova espécie de colonialismo e dominação cultural sob a forma de uma valorização a partir de fora de uma expressão vista como "exótica" ou "pitoresca", em que o descobridor acaba sendo mais importante do que o descoberto, o "nativo" é colocado em posição subalterna e reativa diante da "generosidade" do dominador que "descobre" aquela cultura e a traz à civilização. Uma descoberta e uma valorização seletivas, sem dúvida, e limitadas, já que não se propõem a subverter ou reverter a lógica segundo a qual certa cultura é tida como central e as outras são "do resto do mundo". Eurocentrismo ou anglocentismo à toda, e toda a herança romântica de valorizar de fora (e de cima) os primitivos, os nativos, os selvagens, etc. Paul Simon, nesse aspecto, não se salva.
Mas voltemos a Homeless. Imbuída de todo esse espírito "world music", desafiando o maniqueísmo que pretendia combater o racismo da África do Sul isolando-a como um todo, a música é registro de uma realidade ao mesmo tempo específica daquele grupo e genérica da situação dos "sem-teto" em qualquer cidade do chamado "Terceiro Mundo" e, aparentemente, cada vez mais comum também nos ditos países centrais em crise atualmente. Do que fala Homeless?
O refrão em inglês faz referência à imagem idílica do luar dormindo num lago escuro. Há alguma poesia em não ter um teto... Esse tom de consolo serve apenas para atenuar o relato mais duro em outro momento da letra: "Strong wind destroy our home / Many dead, tonight it could be you" (vento forte destrói nossa casa, muitos mortos, esta noite poderia ser você). Um motivo muito recorrente nas canções que retratam as condições de moradia dos mais pobres é exatamente a sujeição desses personagens às condições naturais, e sua vulnerabilidade: um vento, uma chuva ou qualquer outro "desastre natural" condena-os ao total desamparo. Um exemplo desse tipo de temática é identificável também num samba como Aguenta a mão, João, de Adoniran Barbosa.



O sinal da solidariedade de Simon aparece de forma sutil no canto-e-resposta de "somebody sing ih-ih-ih, somebody say hello, somebody cry why" (alguém chora "por quê?"). A letra em em suaíle, de autoria de Joseph Shabalala, infelizmente ficará sem tradução... A única palavra que consegui localizar é "maweni", que parece significar algo como "trapos". É uma pena que, para nós, seu conteúdo permanecerá um mistério (se houver alguém que consiga traduzi-la, por favor poste aqui mesmo!), mas vale o registro, ao menos, de que também Paul Simon olhou para os desabrigados e produziu música da maior beleza.
Isto é, talvez, o que de mais importante se pode "ler" da canção: a beleza ao se referir à situação de perda da moradia só pode ser entendida sob a chave da solidariedade. O posicionamento de Paul Simon enquanto "colonialista" pode ser questionado, mas entender o desabrigo como um drama seríssimo não é uma obviedade: mesmo entre nós, há muitas pessoas que se mostram absolutamente incapazes de demonstrar o mesmo sentimento. São os "cabeças de prego" a que se referem os Demônios da Garoa.

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