quinta-feira, 11 de abril de 2013

Cidades inventadas

O Brasil é um país de urbanização caótica e de crescimento desordenado porque não temos uma tradição de urbanismo e planejamento no Brasil, certo?
Errado.
Ainda está por se fazer um estudo mais aprofundado que identifique e demonstre de onde esta ideia se originou e como foi difundida a ponto de se tornar um lugar-comum tão banal (e enganoso) quanto dizer que o centro de uma cidade é seu "coração" ou que as avenidas são "artérias" e as áreas verdes seus "pulmões". Em outra ocasião, posso retomar esta ideia problemática de associar a forma urbana a organismos vivos, mas o que interessa aqui é esta ideia de que nossas cidades são "caóticas" porque "não planejadas".
Uma das fontes deste argumento é o clássico ensaio de Sérgio Buarque de Hollanda, "O Semeador e o Ladrilhador", capítulo do livro Raízes do Brasil. Sérgio Buarque defende a ideia de que a colonização espanhola da América optou pelo traçado urbano do "ladrilhador", reticulado e ortogonal - portanto, "planejado" - enquanto o colonizador português teria adotado o padrão do "semeador", em que o traçado das cidades é menos rígido e mais "espontâneo", uma disposição à informalidade e um desapreço pelo controle e planejamento antecipados, que se evidenciaria num traçado mais regular. O argumento de Sérgio Buarque foi posteriormente contestado por Nestor Goulart Reis Filho em sua tese de livre docência, que resultou no livro Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil, 1500 - 1720.
O documentário abaixo, Cidades Inventadas, foi produzida para o canal de TV History Channel, e vai na contramão do chavão (contando, inclusive, com diversos depoimentos de Nestor Goulart).

Em resumo, o que se diz ali é que há sim uma tradição de não apenas planejamento, mas também de desenho e construção de cidades, especialmente de cidades capitais no país. Desde a primeira capital da colônia - Salvador - à nossa atual capital da Federação - Brasília - o Brasil foi palco de uma interessantíssima experimentação urbanística, que também incluiu a capital do Brasil Holandês - Recife.
A despeito desta "tradição", uma herança igualmente histórica e permanente permanece como nosso grande desafio: o de estender a cidade "planejada" a toda sua população, especialmente os mais pobres. Assim, o documentário procura mostrar também como mesmo essas cidades inventadas são marcadas pela segregação socioespacial violenta de sua população pobre. Junto com isso, os usos e as manifestações culturais dessas populações (compostas, por herança e "tradição" escravagista, majoritariamente de negros) são estigmatizados e marginalizados.
Embora em alguns aspectos já esteja datado, não se pode dizer que os desafios estejam superados, pelo contrário. E, claro, a noção da desordem e da ausência de planejamento igualmente permanecem. Contestar esses lugares-comuns implica desconstruir os argumentos e questionar seus enunciadores em seus interesses e motivações: o que se esconde por trás da aceitação acrítica de um estereótipo, e o que ele procura obscurecer?
Algumas dessas questões, e um debate sobre a polêmica com Sérgio Buarque, é exposta na seguinte conferência pelo próprio arquiteto e historiador Nestor Goulart Reis.

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