quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O cidadão contra a cidade ideal


O título deste post parafraseia um capítulo do livro A cidade na História, do sempre fundamental Lewis Mumford, em que o autor examina a ascensão de uma forma de pensamento "utopista" entre filósofos do porte de Platão e Aristóteles. Sem pretender resumir a riqueza deste texto, basta destacar que Mumford mostra que o ápice ateniense como organização política e civil é anterior aos dois maiores filósofos gregos. Aristóteles, por exemplo, chegou a educar o conquistador macedônico Alexandre, que afinal conquista a Hélade e unifica as cidades-Estado que, até então, eram unidades autônomas.
O pensamento idealista de Platão é derivado, de certa forma, de um desencantamento com a experiência "democrática" de Atenas, que condenou à morte seu mestre Sócrates, talvez o filósofo mais estreitamente ligado ao diálogo e ao debate que deveria caracterizar em sua grandeza a experiência política (que, para os gregos, equivalia em grande parte a urbanidade e civilidade - e todas essas palavras trazem, não por coincidência, a "cidade" em sua raiz). O tratado político de Platão, de fato, dedica-se à discussão da noção de justiça. O que é um governo justo, e como o poder pode ser exercido com justiça?
O que Mumford censura em Platão é o caminho que o grego escolhe para responder às limitações daquela democracia: em lugar de mais, menos diálogo. Ao "calor" das discussões de assembleia, em que as decisões da "opinião pública" são influenciadas por oradores habilidosos, e a energia e furor da "massa" são manipuláveis com recursos de retórica, Platão teria respondido com a proposta de uma cidade "ideal" rígida, governada por "sábios". Isso equivaleria a dizer que, no ideal platônico, os governantes se pautariam unicamente pelo bem comum, por um elevado e desapaixonado senso de justiça que lhes permitira sempre decidir pelo melhor. Muitos séculos de experiência nos permitem ver que esse governo magnânimo não se verificou, exceto talvez em casos muito excepcionais. Extremamente comum, entretanto, é o caminho que leva, da crítica à "irracionalidade" da decisão política coletiva, na direção de uma reivindicação de julgamentos desapaixonados e/ou um poder centralizado e forte.
Parece que nos encontramos, atualmente, na mesma encruzilhada. O julgamento do "mensalão" é um caso paradigmático, neste sentido. Não quero entrar no mensalão em si, mas nos caminhos que nossa sociedade demonstra querer trilhar ao clamar por justiça. Um dos caminhos é o que se fia no lema "a voz do povo é a voz de Deus", tomado literalmente. A "voz do povo", evidentemente, é o da "opinião pública", e esta parece se inclinar francamente a favor da punição severa, exemplar e didática, de todos os envolvidos. São louvados os juízes que votam alinhados com a opinião pública, e execrados os que dela discordam, como se essa discordância significasse necessariamente que sejam igualmente corruptos. Entre os defensores dos acusados, a tendência é a mesma, com sinais trocados: os juízes alinhados com a "voz do povo" são tão manipulados quanto aquela, e agem de acordo com interesses escusos (como a mídia que manipula essa voz).
Outro caminho é o que aposta no julgamento "técnico", imune (ou insensível?) ao "clamor popular". Foi a posição de Celso Mello, por exemplo. E um terceiro caminho é o que defende a inutilidade de longos, desgastantes e - aparentemente - inúteis julgamentos. O prolongamento das discussões seria unicamente capaz de resultar em "pizza": ou seja, quanto mais se discute, menos provável a condenação. Portanto, melhor que uma autoridade imbuída de inquestionável (sic) reputação, caráter e senso do interesse público, seja capaz de decidir rapidamente e sem impedimentos. O que esses dois caminhos têm em comum é o desejo de um governo "platônico", que substitua o debate por uma decisão proveniente de uma "sabedoria" superior - seja a tecnicalidade da lei interpretada de forma positiva (e até positivista), seja o clamor popular aceito sem ressalvas.
Mas será a "voz do povo", entendida desta maneira, capaz de produzir justiça? E será que existe qualquer "sábio" capaz de decidir de forma desinteressada? Até onde a experiência histórica permite reconhecer, a resposta para as duas perguntas é "não". A voz do povo condenou Sócrates, e o "sábio" se tornou "Führer"...
Não há saída, pois. Na verdade há sim, mas é a mais trabalhosa: continuar o debate. Possibilitar idas e vindas, mudança de opinião, garantir possibilidade de apelação e reexame. Até que uma decisão seja tomada de forma serena - não insensível, mas tampouco intempestiva. E, quando se mostre impossível alcançar essa serenidade, ao menos demonstre que alcançou o acordo possível. Democracia é difícil, por vezes lenta demais, até frustrante. Mas é um meio de conseguir um tipo especial de justiça: um que não se baseia no desejo de vingança.

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