quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Manifesto de Apoio às Ocupações do Grajaú e de Repúdio à Violência Policial contra os Trabalhadores e Trabalhadoras em Luta por Moradia

Apoiamos e compartilhamos o manifesto abaixo:

A falta de moradias e a precariedade das condições de habitação de grande parte da população pobre de São Paulo sempre foi um problema social grave, e tem piorado nos últimos anos. Por meio da ação de grandes empreiteiras e imobiliárias, respaldadas e incentivadas pelo Estado em âmbito municipal, estadual e federal, regiões que abrigam uma importante parcela da população trabalhadora da cidade passaram a ser objeto de violenta especulação imobiliária. O distrito do Grajaú, que concentra mais de 1 milhão de pessoas, tem sido varrido por uma onda de despejos em massa. Via de regra, às famílias atingidas é oferecida uma indenização pífia ou o auxílio-aluguel, desencadeando um brutal aumento do déficit habitacional, do preço dos aluguéis, bem como do custo de vida na região de uma maneira geral.
Em resposta a esse quadro desesperador, sobretudo nos últimos dois meses dezenas de terrenos abandonados foram ocupados de maneira espontânea pela população pobre do extremo sul de São Paulo. Em muitos casos, em meio a um processo intenso de organização, os ocupantes se engajaram em viabilizar um projeto habitacional nas áreas ocupadas, buscando garantir não apenas a construção de moradias, mas também a preservação ambiental, e a criação de equipamentos públicos e de áreas coletivas.
Diversos esforços foram feitos no sentido de discutir esses projetos com a administração do Prefeito Fernando Haddad, que reiteradamente negou a possibilidade de diálogo. Além disso, por diversas vezes se afirmou publicamente que os ocupantes são oportunistas, que supostamente querem “furar” as irreais “filas de espera” da COHAB e da Secretaria Municipal de Habitação. Além disso, foi dito categoricamente por membros da gestão Haddad que todos os terrenos públicos serão reintegrados, e que inclusive iriam pressionar os proprietários dos terrenos privados a solicitar a reintegração de posse na justiça.
A intransigência e a truculência da atual gestão municipal chegou a um ponto extremo no dia 16 de setembro, quando, sem qualquer aviso prévio e sem ordem judicial, o Prefeito Fernando Haddad e a Subprefeita da Capela do Socorro, Cleide Pandolfi, mobilizaram a Tropa de Choque da Polícia Militar, bem como efetivos da Guarda Civil Metropolitana e da Guarda Ambiental para despejar violentamente os moradores do Jardim da União, que ocupavam um imenso terreno abandonado, de propriedade da Prefeitura de São Paulo. Bombas de gás lacrimogêneo, sprays de pimenta, balas de borracha e cassetetes foram empregados contra crianças, idosos, gestantes, pais e mães de família que já haviam se comprometido a desocupar a área pacificamente. Móveis, geladeiras, fogões e diversos outros pertences dessas famílias foram destruídos e extraviados, celulares e câmeras filmadoras foram roubados, pessoas foram detidas… Uma violência desmedida e inaceitável objetivando dar cabo a uma reivindicação legítima e necessária.
A questão habitacional do Grajaú não será resolvida com repressão policial, e nem com intransigência, desqualificação e medidas paliativas. Reivindicamos a abertura de uma real negociação entre as famílias ocupantes e o Prefeito Fernando Haddad, para que se viabilize a implementação de programas habitacionais nos terrenos ocupados. E repudiamos o emprego de violência contra as famílias em luta, como ocorreu no trágico dia 16 de setembro. Todo Apoio à Ocupação Jardim da União, e às demais ocupações do Grajaú! Abaixo a Repressão contra a população em luta por moradia!
Assinam o Manifesto (em ordem de assinatura):

Paulo Arantes – FFLCH USP
Otília Beatriz Fiori Arantes – FAU-USP
Boaventura de Sousa Santos, Universidade de Coimbra
Maria Rita Kehl. psicanalista, SP
Roberto Leher – UFRJ
Lincoln Secco – USP
Ivana Jinkings, editora, SP
Caio N. de Toledo. – Unicamp
João Bernardo, escritor
Luiz Bernardo Pericás , USP 
Yanina Stasevskas, psicanalista, SP
Clarisse Chiappini Castilhos, economista, Porto Alegre
Lorene Figueiredo, UFF
Elie Ghanem – FEUSP
Rubens Barbosa Camargo – FEUSP
Hamilton Octávio – PUC-SP
Isabel Loureiro – UNESP
Amarílio Ferreira Junior – professor -Ufscar
Marisa Bittar- Ufscar
Marcos Barbosa de Oliveira – FEUSP
Ricardo Antunes/ UNICAMP
Marcus Orione/ FD– USP
Jorge Luiz Souto Maior/ FD/USP
Danilo Martuscelli (UFFS)
Sérgio Salomão Shecaira/ FD/USP
Heloísa Fernandes/ USP
Mauro Luis Iasi/ ESS UFRJ – NEPEM.
Carlos de Almeida Toledo/ Unicamp
Virgínia Fontes – UFF
Concessa Loureiro Vaz/ UFMG
Davisson Cangussu de Souza/ Unifesp-Guarulhos
Ricardo Figueiredo de Castro, historiador/ IH/UFRJ
Fábio Konder Comparato/ Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP
Luciana Zaffalon/ Ouvidora-Geral da Defensoria Pública de São Paulo
Raquel Rolnik/ FAU – USP, Relatora da ONU para o direito à moradia adequada.
João Sette Whitaker Ferreira – FAU-USP (LABHAB)
Angélica Matos Souza/ UNESP
Vladimir Safatle / USP
Carlos Vainer/ IPPUR- UFRJ
Francisco Alambert/ USP
Marília Pinto de Carvalho/ USP
Carmen Sylvia Vidigal Moraes
Priscila Figueiredo/ professora FFLCH-USP
Luciana Henrique da Silva/ UNICAMP
Eneas de Oliveira Matos/Professor da Faculdade de Direito da USP
Marildo Menegat ESS-UFRJ
Beatriz de Moraes Vieira História – UERJ
Celso Frederico / USP
Enid Yatsuda Frederico / Unicamp
Sérgio de Carvalho/ USP
Jorge Grespan/ USP
Laura Gagliardi
Sara Granemann/ ESS/UFRJ – NEPEM
Luiz Carlos Moreira/ autor e diretor teatral
Ana Souto/ dramaturga
Paulo Faria/ diretor teatral
Graça Cremon/ produtora cultural
Kiko Rieser/ diretor e dramaturgo
Luiz Renato Martins / ECA-USP
Alexandre Mate / UNESP (“apoio a luta e protesto, permanentemente”)
Verônica dos Santos Sionti/ Defensora Pública
Patrick Lemos Cacicedo/Defensor Público – Coordenador do Núcleo de Situação Carcerária
Bruno Shimizu/Defensor Público – Coordenador Auxiliar do Núcleo de Situação Carcerária
Luciana Zaffalon/ Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Maria de Fátima Tardin Costa – Arquiteta e Urbanista
Anelise Gutterres /PPG Antropologia Social da UFRGS
Lúcia Rodrigues/jornalista
Simone Polli – UTFPR
Ney Piacentine – integrante do Comitê Gestor do Conselho da Cidade, presidente do Centro ITI (Brasil International Theatre Institute)
Rede de Comunidades do Extremo Sul
USINA - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado - Assessoria Técnica – SP
Assentamento Milton Santos
Movimento Terra Livre
Associação de Moradores da Favela do Moinho
Movimento Moinho Vivo
Movimento Hip Hop Organizado Mh2o
Coletivo Zagaia
Comboio
Tribunal Popular
Rede 2 de Outubro
Instituto Práxis de Direitos Humanos
Radio Varzea
Cedeca Interlagos
Movimento Mães de Maio
Rede Nacional de Familiares e Vítimas da Violência do Estado
Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência (RJ)
Projeto Raiz – Cursinho Popular
Pela Moradia (RJ)
Kiwi Cia de Teatro
Grupo Cena Livre
Coletivo da Albertina
Cia Estável de Teatro
Engenho Teatral
Coletivo de Galochas
Brava Companhia
Cia Antropofágica
Pessoal do Faroeste
Buraco d’Oráculo
Grupo Teatral Parlendas
Coletivo Voz da Leste
Espaço Sacolão das Artes
Trupe da Lona Preta
Espaço Carlos Marighella
Rede Recusa
Associação dos Geógrafos Brasileiros - São Paulo
Comitê Popular da Copa
Tia Tralha/ grupo de teatro
Coletivo Katu - Educação Popular
Trupe Olho da Rua - Santos
Movimento Cultura Livre
Movimento Arte pela Vida
Enchendo Laje e Soltando Pipa
Ocupação Quilombo das Guerreiras - RJ

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O cidadão contra a cidade ideal


O título deste post parafraseia um capítulo do livro A cidade na História, do sempre fundamental Lewis Mumford, em que o autor examina a ascensão de uma forma de pensamento "utopista" entre filósofos do porte de Platão e Aristóteles. Sem pretender resumir a riqueza deste texto, basta destacar que Mumford mostra que o ápice ateniense como organização política e civil é anterior aos dois maiores filósofos gregos. Aristóteles, por exemplo, chegou a educar o conquistador macedônico Alexandre, que afinal conquista a Hélade e unifica as cidades-Estado que, até então, eram unidades autônomas.
O pensamento idealista de Platão é derivado, de certa forma, de um desencantamento com a experiência "democrática" de Atenas, que condenou à morte seu mestre Sócrates, talvez o filósofo mais estreitamente ligado ao diálogo e ao debate que deveria caracterizar em sua grandeza a experiência política (que, para os gregos, equivalia em grande parte a urbanidade e civilidade - e todas essas palavras trazem, não por coincidência, a "cidade" em sua raiz). O tratado político de Platão, de fato, dedica-se à discussão da noção de justiça. O que é um governo justo, e como o poder pode ser exercido com justiça?
O que Mumford censura em Platão é o caminho que o grego escolhe para responder às limitações daquela democracia: em lugar de mais, menos diálogo. Ao "calor" das discussões de assembleia, em que as decisões da "opinião pública" são influenciadas por oradores habilidosos, e a energia e furor da "massa" são manipuláveis com recursos de retórica, Platão teria respondido com a proposta de uma cidade "ideal" rígida, governada por "sábios". Isso equivaleria a dizer que, no ideal platônico, os governantes se pautariam unicamente pelo bem comum, por um elevado e desapaixonado senso de justiça que lhes permitira sempre decidir pelo melhor. Muitos séculos de experiência nos permitem ver que esse governo magnânimo não se verificou, exceto talvez em casos muito excepcionais. Extremamente comum, entretanto, é o caminho que leva, da crítica à "irracionalidade" da decisão política coletiva, na direção de uma reivindicação de julgamentos desapaixonados e/ou um poder centralizado e forte.
Parece que nos encontramos, atualmente, na mesma encruzilhada. O julgamento do "mensalão" é um caso paradigmático, neste sentido. Não quero entrar no mensalão em si, mas nos caminhos que nossa sociedade demonstra querer trilhar ao clamar por justiça. Um dos caminhos é o que se fia no lema "a voz do povo é a voz de Deus", tomado literalmente. A "voz do povo", evidentemente, é o da "opinião pública", e esta parece se inclinar francamente a favor da punição severa, exemplar e didática, de todos os envolvidos. São louvados os juízes que votam alinhados com a opinião pública, e execrados os que dela discordam, como se essa discordância significasse necessariamente que sejam igualmente corruptos. Entre os defensores dos acusados, a tendência é a mesma, com sinais trocados: os juízes alinhados com a "voz do povo" são tão manipulados quanto aquela, e agem de acordo com interesses escusos (como a mídia que manipula essa voz).
Outro caminho é o que aposta no julgamento "técnico", imune (ou insensível?) ao "clamor popular". Foi a posição de Celso Mello, por exemplo. E um terceiro caminho é o que defende a inutilidade de longos, desgastantes e - aparentemente - inúteis julgamentos. O prolongamento das discussões seria unicamente capaz de resultar em "pizza": ou seja, quanto mais se discute, menos provável a condenação. Portanto, melhor que uma autoridade imbuída de inquestionável (sic) reputação, caráter e senso do interesse público, seja capaz de decidir rapidamente e sem impedimentos. O que esses dois caminhos têm em comum é o desejo de um governo "platônico", que substitua o debate por uma decisão proveniente de uma "sabedoria" superior - seja a tecnicalidade da lei interpretada de forma positiva (e até positivista), seja o clamor popular aceito sem ressalvas.
Mas será a "voz do povo", entendida desta maneira, capaz de produzir justiça? E será que existe qualquer "sábio" capaz de decidir de forma desinteressada? Até onde a experiência histórica permite reconhecer, a resposta para as duas perguntas é "não". A voz do povo condenou Sócrates, e o "sábio" se tornou "Führer"...
Não há saída, pois. Na verdade há sim, mas é a mais trabalhosa: continuar o debate. Possibilitar idas e vindas, mudança de opinião, garantir possibilidade de apelação e reexame. Até que uma decisão seja tomada de forma serena - não insensível, mas tampouco intempestiva. E, quando se mostre impossível alcançar essa serenidade, ao menos demonstre que alcançou o acordo possível. Democracia é difícil, por vezes lenta demais, até frustrante. Mas é um meio de conseguir um tipo especial de justiça: um que não se baseia no desejo de vingança.