segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Camelódromo, manifestódromo e a redução da urbanidade

Ideias caras ao planejamento e desenho urbano mais ortodoxo preconizam a separação de usos e a definição clara de atividades específicas a serem desenvolvidas em determinados espaços das cidades. A concepção implícita a esta forma de organizar o espaço urbano é centrada na ideia de "eficiência": as atividades devem ser realizadas com o máximo de desempenho e o mínimo custo. Uma lógica, como se pode ver, muito coerente com o nosso capitalismo.
Assim, a parcela dominante da população procura, em nome dessa eficiência capitalista, reduzir os "improvisos" e os "distúrbios" que pudessem inibir ou entravar a livre circulação de pessoas, veículos, mercadorias. Em uma palavra: de riquezas. Daí uma definição estrita e intransigente da rua como "sistema viário": um espaço de circulação, não de permanência; de passagem, não de parada... e de carros, não de pessoas (estas se limitem ao espaço das calçadas. Segurança? Não: desimpedimento ao carro). As calçadas e praças, por sua vez, são igualmente restritas à passagem (mesmo que de pedestres), e outras atividades são consideradas inapropriadas, porque "interferem" no uso principal do espaço, novamente fundado em circulação/passagem. Daí se entende porque as gestões passadas da prefeitura de São Paulo (observemos quanto deste comentário poderá se aplicar à gestão atual...) travaram verdadeira batalha para "livrar" os espaços públicos dos usos "incômodos", como os artistas de rua e o comércio ambulante.
Mas as práticas cotidianas de apropriação e uso do espaço urbano parecem se fundamentar em costumes muito mais antigos do que este requisito de eficiência do urbanismo moderno/contemporâneo. Segundo esses costumes, os espaços urbanos são fundamentalmente "multifuncionais" e seus usos intercambiáveis ou mesmo coexistentes (simultâneos). Não é, provavelmente, uma solução de alta "eficiência", pelo menos não sob o ponto de vista da circulação desimpedida. Mas é uma prática do espaço que propicia uma série de outros ganhos não contabilizados: espaços de interação, intercâmbio, informação. E, como Jane Jacobs já observara há mais de 50 anos: espaços frequentados são geralmente espaços mais seguros...


A desordem insuportável da cidade pré-moderna...

Mas o ideal funcionalista e redutor permanece incólume como parte da ideologia de muitos gestores públicos, autoridades políticas, membros da elite econômica, etc. Para estes, a diversidade e multiplicidade das atividades em espaço urbano se confundem com "desordem", devendo ser disciplinadas e domesticadas. Um primeiro caso deste tipo de intervenção ordenadora contemporânea está nos famigerados "camelódromos", denominação jocosa aos espaços destinados a agrupar comerciantes ambulantes (camelôs), retirados de ruas e praças onde - diz-se - sua presença atrapalhava a livre circulação de transeuntes. Desconsideram-se as condições fundamentais para a sobrevivência do comércio ambulante: a proximidade dos fluxos de pessoas e a possibilidade das compras de oportunidade, não planejadas e realizadas apenas porque o passante vê a mercadoria e resolve adquiri-la. O "camelódromo" pressupõe que todos os compradores dos camelôs dirigem-se a eles previamente motivados a comprar algo, sabendo o que é e dirigindo-se decididamente a eles para a aquisição. Margem nenhuma ao improviso e adaptação. (Lamentavelmente, projetos dessa infame categoria de edifícios têm contado com a colaboração de muitos arquitetos e urbanistas, como mostra o projeto abaixo para um "camelódromo em Porto Alegre):

Todo comércio deve se parecer com um "shopping center"?

A situação se complica ainda mais quando, ao ideal "estético" e "moralizante" de uma rua ou praça livre de camelôs, soma-se também a ideia de que outros usos imprevistos e "desconformes" da cidade representam uma ameaça à ordem vigente ou a um "direito" (mesquinhamente definido) de "ir e vir". De carro, é claro.
Estamos nos referindo, claro, aos protestos de rua, frequentes no Brasil nos últimos dois meses, e sua ocupação dos espaços viários para passeatas, com o óbvio impacto sobre o trânsito local. Pouco importa que os protestos sejam por melhores condições de transporte coletivo e por um padrão renovado de mobilidade e acessibilidade nas cidades.
Pois a "solução" que os governantes do Rio de Janeiro trazem como resposta ao suposto conflito entre manifestantes e os motoristas é fazer exatamente o que se pensou a respeito dos camelôs. Retirá-los do espaço dinâmico, fluido e multifuncional da rua para outro - estático, monótono, isolado. Um espaço que, claro, já ganhou o apelido de "manifestódromo"...
Está claro que o objetivo não declarado é silenciar e isolar os protestos, extrair-lhes a capacidade de dialogar com o restante da população e, eventualmente, angariar seu apoio. Mas, para além do objetivo imediato, há que se notar o paradigma persistente, segundo o qual a cidade não deveria servir para mais nada além de ser o espaço de produção e circulação do capital. O que virá depois?
Devemos nos opor a este tipo de solução. Pela possibilidade de inventar o uso do espaço a cada momento, de que ele acomode a criatividade, o improviso, e não apenas a eficiência. E, acima de tudo, que se mantenha aberta a possibilidade de questionar a "ordem" vigente, quando for necessário.
Encerramos com uma imagem satírica: o que teria sido da Revolução Francesa se os manifestantes aceitassem se restringir a um espaço previamente limitado por aqueles contra os quais protestavam?


A distopia da "baderna ordenada"...

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