- As manifestações contra o aumento de passagens, que nesta semana ocorreram em São Paulo e diversas outras cidades brasileiras, assim como protestos anteriores contra as remoções forçadas para obras da Copa do Mundo e/ou das Olimpíadas, ou ainda as numerosas "marchas" promovidas pelos mais diversos grupos e movimentos sociais (feministas, religiosos ou não religiosos, defensores da descriminação da maconha, professores, etc.) devem ser vistos como partes de um mesmo e grande processo. Não se trata de eventos isolados, mas de expressões multifacetadas de um sentimento coletivo que precisa ser compreendido.
- Muitos sociólogos analisam a formação sociopolítica brasileira sob a perspectiva do que se chama "modernização conservadora": certos aspectos da realidade são "modernizados" (produção e consumo, técnica e tecnologia, ciência, etc), enquanto outras mudanças mais profundas para uma "modernização" em sentido amplo, especialmente no que diz respeito à ampliação de direitos e redução de desigualdades sociais são preteridas em favor da manutenção do status quo. Ou seja, uma modernização que não permite rever ou aprimorar a democracia real e a modificação de estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que, historicamente, legitimaram opressão, exploração e segregação da maior parte da população.
- Qualquer tentativa de ampliar ou universalizar direitos foi sempre seguida de uma reação violenta (simbólica ou concretamente: discursos inflamados ou repressão de fato) da parte daqueles que desejam manter as coisas como estão. No entanto, na última década, uma grande parcela da população adquiriu certos direitos antes negados (uma inclusão por via econômica - renda e poder de consumo) e, mais importante, a consciência de possuir direitos. E de poder exercê-los, e de poder ainda almejar direitos.
- No projeto de uma nova "etapa" de modernização conservadora, o direito por meio do consumo seria suficiente: reiterando a lógica liberal, cada um por si e as relações sociais mediadas pelo mercado, cada vez mais poderoso, cartelizado e inflexível. Entretanto, o roteiro foi subvertido, e os "consumidores" se perceberam, também, "cidadãos". E passaram a reivindicar, reclamar, questionar.
- O lugar por excelência do exercício da cidadania, já nos ensinavam os gregos, é a cidade, o espaço público, o lugar de encontro e de aglomeração. E esses novos cidadãos perceberam isso rapidamente. Na verdade, suspeito, o "povo" sempre soube que a cidade é o seu lugar. A cidade como lugar de vivência, de troca, da experiência compartilhada. Das rodas de capoeira às procissões religiosas, das festas às passeatas, só quem não entendia a cidade como "o lugar" da vida coletiva eram, sempre, aqueles para quem a cidade era um "bem", um "patrimônio" (no sentido econômico-jurídico do termo: posse), uma mercadoria.
- Fazendo da cidade seu lugar, a população se reapropriou dela e reinventou os espaços públicos, e reinventou também os termos do debate político. "Mais amor, por favor", pediam cartazes de lambe-lambe colados pela cidade. Pichações e grafites problematizavam as questões urbanas: "Ver a cidade", "Você não está preso no trânsito, você é o trânsito", "você praça eu acho graça, você prédio eu acho tédio", são apenas alguns exemplos. De forma dispersa, aparentemente desarticulada, fora dos padrões formais e dos códigos técnicos e especializados da elite e da burocracia, a população manifestava sua própria visão e seus anseios acerca de uma cidade desejável. Mesmo fora dos canais "oficiais", a população mostrava que tinha o que dizer, e queria fazer-se ouvir.
- A irrupção dos protestos, manifestações, passeatas, portanto, não são nada mais do que a extensão desse desejo de opinar, interferir... participar. Fazer do exercício democrático muito mais do que apenas cumprir a obrigação do voto (aliás, muitos dos que se manifestam defendem, inclusive, o voto não obrigatório. É uma discussão à parte, mas vale perceber que a demanda não se alinha necessariamente a um possível desinteresse ou alheamento da política). Se a democracia pressupõe a participação dos cidadãos nas decisões que interferem na vida do coletivo (democracia grega), e se entendemos hoje que cidadãos são todos, e não apenas a sua elite (modelo iluminista/moderno), o desafio que esses movimentos colocam é o de buscar modelos de democracia que não se limitem à democracia representativa e de eleições periódicas (modelo liberal/burguês).
- Incapaz de lidar ou mesmo de compreender essas demandas emergentes, a elite política adota um padrão já clássico de lida com movimentos populares: 1) ignorar; 2) deslegitimar e desqualificar; 3) reprimir; 4) acolher seletivamente. Vimos este processo, didaticamente, ao longo da semana. Basta rever os noticiários. Veremos a continuidade disso à medida que as manifestações prosseguirem. Quando elas se tornaram grandes o bastante para que não pudessem ser ignoradas, imediatamente se alegou a "violência" e o "vandalismo" para justificar o passo 3.
- É desnecessário falar qualquer coisa sobre o tal vandalismo. Mas é bobagem achar que qualquer defesa do direito à manifestação implique automaticamente defender a depredação. Isso não passa de uma armadilha retórica que tem por único objetivo justificar uma repressão brutal, descabida e completamente incompatível com um regime democrático. Se os excessos cometidos pelas forças do Estado serão tratados como exceções e casos isolados, não pode ser outra a atitude em relação a qualquer "vandalismo". Fora isso, nenhuma manifestação social pode ser reprimida, seja qual for seu conteúdo. E a apropriação coletiva do espaço público é legítima: a rua não é apenas o suporte do tráfego, mas de qualquer deslocamento. O carro usufrui da rua, ele não é dono dela. Os espaços da cidade não são monofuncionais, e as múltiplas possibilidades de apropriação do espaço urbano não podem ser restringidas para favorecer uma única função. A rua é para o trânsito como é para a passeata, a procissão, o desfile de carnaval, o cortejo fúnebre. A praça é para o descanso, o encontro, a conversa, o comércio, a batucada. Há muito os urbanistas abandonaram a ideologia da especialização dos espaços urbanos e da separação de funções. A população, por sua vez, nunca a aceitou.
- Os dirigentes, enquanto ocupantes temporários de um cargo para o qual foram designados pela vontade popular, têm a obrigação de dialogar e buscar compreender e acolher as demandas que a "rua" lhes apresenta. É obrigação do Estado compreender a linguagem "desarticulada", não o contrário: não é obrigação do povo dominar os códigos formais e a linguagem técnica. Portanto, qualquer justificativa "técnica" (como "o aumento foi inferior à inflação acumulada") visa apenas esvaziar o debate, excluir do direito à opinião todos os que não puderem ingressar na argumentação pretensamente especializada (sabemos que números são manipuláveis: de qua inflação se está falando?), por isso pode ser considerada antidemocrática. Queremos democracia plena, e isso significa encontrar (ou criar, se for preciso) formas de garantir que as variadas opiniões e desejos de cidade sejam ouvidos, discutidos, avaliados. Menos do que isso é autoritarismo.
Arquitetura, urbanismo, urbanidades e outras coisas que dizem respeito às cidades. Pesquisa e ensino em História, Teoria e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo.
domingo, 16 de junho de 2013
Dez pontos sobre manifestações, direitos e democracia nas cidades brasileiras
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