Terminou hoje a demolição de metade de um quarteirão na rua de casa. Uma meia dúzia de casinhas e um predinho. Algumas das casas muito bem cuidadas, com beirais desenhados - coisa antiga e comum no bairro, esquadrias de madeira, jardim. Outras velhas, cinzas de tanto estar ali. No predinho, morava uma amiga do primário. Depois de alguns anos longe, conseguiu esse aluguel mais em conta se comparado ao que estava rolando. Bem, ela foi expulsa de novo, e tenho receio que não consiga mais voltar pra cá.Bem, a Luana não teve tempo de tirar fotos da demolição, mas eu sim. Foram fotos apressadas, tiradas à noite e com uma câmera de celular, mas fica o registro. Em breve, eu tento postar algumas fotos de como está agora. E, no futuro, de como ficará a quadra com o novo empreendimento. Que, podemos esperar, será uma torre isolada, murada, segregada, para um público que nada conhece nem quer conhecer deste bairro.
Eu queria ter fotografado, mas fui levando, quase querendo manter uma sensação de que não havia pressa, de que aquilo não ía vingar, não ía ser tão cedo... Mas eu preciso fotografar o meu bairro. Já perdi tanto.
Falando assim, parece pura 'piegage', mas deixa eu explicar. Eu nasci num lugar onde a história da cidade, com todas as contradições sociais, era evidente nas casas e nas gentes. Eu me formei ali. O Cambuci é desses bairros velhos, que nasceu "cu do mundo" e virou centro. Imagina poder ver as histórias do cu do mundo geminadas às do centro, desde muito pequena... Estudar em escola pública no Cambuci fez com que eu tivesse uma noção bem ampla de como é a nossa cidade. Eu tive amigas moradoras de edifícios altos e que faziam propaganda na televisão. E eu tive amigas do cortiço logo ali. Eu visitava a casa de ambas. Eu tinha amigas de trocentas religiões, e fui passear em algumas das igrejas delas também. Eu tinha amigos filhinhos da mamãe, e amig@s filhos de empregadas domésticas. Eu tive um amigo que, machucado, estava em fila, cantando o hino no pátio da escola, de chinelo. Eu chorei, achando que ele não tinha mais o calçado dele e que iria levar bronca.
Pra resumir, eu conheci, na escola e no bairro, a praça pública.
O que está acontecendo, há muito, é que o cu do mundo não é mais ali, e o centro não vai tolerar mais seus vestígios. Em São Paulo é assim. É uma cidade pra deformar as pessoas, pra que elas fiquem bem separadas, e se odeiem, e tenham medo umas das outras.
PS: tenho andando muito no entorno do Sesc Vila Mariana e... bem... o Cambuci não é a Vila Mariana. Vai ser?
Arquitetura, urbanismo, urbanidades e outras coisas que dizem respeito às cidades. Pesquisa e ensino em História, Teoria e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo.
quinta-feira, 28 de março de 2013
Cambuci 100 anos
Vou aqui compartilhar o testemunho da Luana Soncini a respeito do bairro onde vivemos, e que está passando por profundas e violentas transformações. O interesse no relato é que, de certa forma, isto está acontecendo em diversos bairros da cidade, submetidos a um modelo de produção de cidade em que somente tem voz o interesse financeiro em obtenção de renda a partir da terra (especulação imobiliária), com o aval de um público desacostumado a pensar no interesse coletivo e em questões como a qualidade urbana e do ambiente ao nosso redor.
quinta-feira, 7 de março de 2013
A longa e tortuosa estrada para um planejamento urbano democrático
No dia 19 de fevereiro, uma terça-feira, o auditório da Câmara Municipal de São Paulo foi palco da primeira reunião pública para discussão do Plano Diretor da cidade, que deverá ser revisto este ano. Quero fazer aqui um relato breve (talvez não tanto para os padrões da internet...) com impressões e reflexões pessoais, suscitadas pelo evento. O formato blog me libera de qualquer pretensão acadêmica, mas assim mesmo acho que vale a pena ao menos uma "referência bibliográfica": os trabalhos do americano John F. Forester inspiram muitas das observações que farei aqui, particularmente o livro Planning in the Face of Power (quem quiser um primeiro contato com o autor pode encontrar, infelizmente apenas em inglês, um artigo interessante sobre o "planejamento em face do conflito" aqui).
1. “De boas intenções o inferno está cheio”
Talvez valha a pena começar com o dito popular, o "velho deitado", como diria Adoniran Barbosa. O evento foi festejado como (mais) uma demonstração de abertura ao diálogo e à participação pública demonstrada pela atual gestão municipal, após os tenebrosos anos de autoritarismo e cerceamento das gestões Serra-Kassab. Não tenho dúvidas de que a equipe técnica (representada no evento pelo diretor do Departamento de Urbanismo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Kazuo Nakano), o Secretário Fernando de Mello Franco e o próprio prefeito, que fez questão de comparecer e falar na abertura do evento, desejam e pretendem que o planejamento da cidade seja democrático e participativo. Acho que todos merecem este voto de confiança, e as primeiras iniciativas do secretariado mostram claramente esta intenção, como já se viu antes na reunião com o secretário de cultura, Juca Ferreira - reunião esta que foi repetidamente lembrada e comentada, com admiração. O impacto daquele evento ainda merece ser melhor digerido, porque o que teve em abundância naquele evento, neste, infelizmente, faltou. E é este o ponto que eu quero destacar inicialmente: as supostas boas intenções, das quais não duvido, ainda são insuficientemente praticadas quando se trata do planejamento da cidade. Onde está o problema?
2. Ouvir mais do que falar
Acho que a primeira diferença fundamental reside neste ponto: a proposta da atual gestão para o "modelo de cidade" que se espera e se defende foi amplamente, talvez deva dizer exaustivamente, exposto pelos representantes da SMDU. Talvez isto tenha sido uma demanda dos próprios organizadores do evento, não posso afirmar. Mas a estrutura do evento, em si, já foi rígida e formalista demais: cerca de uma hora e meia para as apresentações, pouco mais de 40 minutos para os debates, já que a reunião começou com o corriqueiro atraso de meia hora, mas não podia se prolongar além das 22h, por imposição da casa. Desses 40 e poucos minutos, quase todo o tempo foi tomado por algumas intervenções orais de lideranças ou autoridades convidadas a falar, enquanto as cerca de 70 inscrições por escrito mal foram lidas, a grande maioria ficou sem resposta. O secretário se comprometeu a respondê-las, mas a chance de ouvir mais gente foi perdida.
O formato todo era de uma audiência pública, muito institucionalizado para ser o primeiro contato. Nisto acertou Juca Ferreira, e erraram os organizadores (ou Mello Franco e Nakano?). Faltou espaço para que os presentes se manifestassem, falassem, fizessem barulho. O evento pareceu uma grande discussão técnica, ou um debate acadêmico, quando talvez muitos dos presentes tivessem outra expectativa.
Não quero com isso afirmar, como foi insinuado em certos momentos da audiência, que isto demonstre um autoritarismo de fundo, ou que a abertura para diálogo e participação seja mero discurso. Acho, na verdade, que as limitações deste evento revelam uma questão de fundo muito mais complexa no que diz respeito à participação popular em planejamento urbano. Em suas origens, o planejamento não foi concebido como um processo democrático e aberto a todos, mas como um processo eminentemente técnico. Além disso, a nossa "tradição" de democracia é caracterizada por um exercício democrático de "baixa intensidade", como diria o sociólogo Boaventura Souza Santos. A demanda por abertura é relativamente recente, e nossa experiência acumulada ainda é pequena para que tenhamos procedimentos consagrados e um acúmulo de reflexões neste sentido. Espero que este relato possa, de alguma maneira, contribuir para avançar esta reflexão.
3. Linguagem e assimetria
Um aspecto que parece ter sido particularmente irritante para certa parcela da audiência, ao ponto de obrigar o secretário a reconhecer, no final, que sua apresentação talvez tivesse sido um pouco "hermética". "O que ele quis dizer, com isso, é que para boa parte do público, ele "falou grego". Boa parte das exposições e do pouco que houve de debate, foi conduzido sob uma forma que, mesmo que expressando em seus termos as intenções - e as cobranças - por democracia e participação, é excludente por princípio. Estou me referindo à linguagem técnica, aos jargões, aos termos usuais apenas a um pequeno grupo de especialistas e seus interlocutores mais frequentes. É uma linguagem que requer um domínio dos termos técnicos, e que normalmente se restringe ou aos profissionais da área, aos movimentos articulados, aos acadêmicos, à imprensa especializada. Não ao ouvinte comum, e aqui não há nenhum menosprezo por esse ouvinte, e não se deve confundir "comum" com "não instruído". Pessoas muito bem instruídas de outras áreas de formação parecem igualmente ter tido dificuldades com o conteúdo da discussão.
Diante disso, cabe a indagação: a cidade é assunto para especialistas? Seus rumos só podem ser discutidos nesses termos, e desta forma? A resposta mais óbvia - assumindo-se a disposição democrática dos debatedores - é não, mas isso não encerra o problema. Como uma determinação de legal, o plano tem que, em algum momento, virar linguagem jurídica. E, como um conjunto de "instrumentos urbanísticos", vai passar por uma fase de desenvolvimento técnico, pelas mãos dos urbanistas responsáveis. Então, estabelecer o ponto em que a linguagem "leiga" passa à "técnica" - e vice-versa - é uma questão delicada, ainda muito longe de ser consenso. Mas é claro que é mais fácil a quem detém o conhecimento técnico compreender a demanda leiga. O contrário é muito mais difícil, então cabe ao(s) especialista(s) se preocupar com a inteligibilidade, a tradução e o trânsito entre as linguagens. Neste sentido, há que reconhecer que o secretário, ainda que um pouco tardiamente, percebeu o problema, ao declarar que sua fala fora “hermética”. Porém, mesmo em sua mea culpa, incorreu no erro que acabava de reconhecer, e mais uma vez fez uso de uma linguagem difícil de compreender (eis o que significa "hermético").
Detive-me longamente na discussão do vocabulário, mas há outro aspecto da assimetria na linguagem que deve ser mencionado: o uso da cartografia deveria ser mais criterioso. Para certos profissionais, a linguagem de mapas parece óbvia e autoexplicativa, mas é apenas um hábito adquirido, com muito treino. Não se pode pressupor que qualquer audiência seja capaz de compreender um mapa projetado num telão, sem ao menos uma introdução, sem explicações ou sem sequer situar o expectador - "aqui é o Centro, ali a Marginal, dá pra entender?". Alternativas não faltariam: hoje, é possível produzir simulações de ambientes que permitiriam passeios virtuais, por exemplo. Esse tipo de recurso costuma ser um pouco malvisto pelos especialistas como mera peça de "marketing", mas é um recurso de comunicação bastante eficiente.
Há um problema mais sério que o uso irrestrito da cartografia revela, que é a ideia de que estudar a cidade requer um olhar de cima, de longe, de fora. Seu uso pode resultar numa hierarquização forçada dos conhecimentos sobre a cidade, que relega todos aqueles que possuem uma experiência de baixo, de perto, de dentro, à posição secundária e subalterna. A cartografia é útil e fundamental, mas como instrumento de exposição num ambiente que requer interação e participação é, na realidade, profundamente autoritário e excludente.
O local de discussão pode também, em muitos casos, constituir um elemento de assimetria e de submissão. No local escolhido para esta primeira discussão pode-se apontar aspectos adequados e inadequados simultaneamente. A centralidade do auditório e a facilidade de acesso da população devem ser louvados: processos "participativos para inglês ver" podem se valer de espaços de difícil acesso ou localização para restringir seu público participante, e isso não aconteceu ali. Por outro lado, a sisudez e o peso institucional como uma Câmara de Vereadores parecem ter pesado mais do que se pode suspeitar: o ambiente acentuadamente formal, o controle de acesso, muitos seguranças... não admira que a audiência tenha tido também pouco ruído, poucas manifestações espontâneas: foi muito mais um auditório do que uma assembleia.
Detive-me longamente na discussão do vocabulário, mas há outro aspecto da assimetria na linguagem que deve ser mencionado: o uso da cartografia deveria ser mais criterioso. Para certos profissionais, a linguagem de mapas parece óbvia e autoexplicativa, mas é apenas um hábito adquirido, com muito treino. Não se pode pressupor que qualquer audiência seja capaz de compreender um mapa projetado num telão, sem ao menos uma introdução, sem explicações ou sem sequer situar o expectador - "aqui é o Centro, ali a Marginal, dá pra entender?". Alternativas não faltariam: hoje, é possível produzir simulações de ambientes que permitiriam passeios virtuais, por exemplo. Esse tipo de recurso costuma ser um pouco malvisto pelos especialistas como mera peça de "marketing", mas é um recurso de comunicação bastante eficiente.
Há um problema mais sério que o uso irrestrito da cartografia revela, que é a ideia de que estudar a cidade requer um olhar de cima, de longe, de fora. Seu uso pode resultar numa hierarquização forçada dos conhecimentos sobre a cidade, que relega todos aqueles que possuem uma experiência de baixo, de perto, de dentro, à posição secundária e subalterna. A cartografia é útil e fundamental, mas como instrumento de exposição num ambiente que requer interação e participação é, na realidade, profundamente autoritário e excludente.
4. Lugar para participar
O local de discussão pode também, em muitos casos, constituir um elemento de assimetria e de submissão. No local escolhido para esta primeira discussão pode-se apontar aspectos adequados e inadequados simultaneamente. A centralidade do auditório e a facilidade de acesso da população devem ser louvados: processos "participativos para inglês ver" podem se valer de espaços de difícil acesso ou localização para restringir seu público participante, e isso não aconteceu ali. Por outro lado, a sisudez e o peso institucional como uma Câmara de Vereadores parecem ter pesado mais do que se pode suspeitar: o ambiente acentuadamente formal, o controle de acesso, muitos seguranças... não admira que a audiência tenha tido também pouco ruído, poucas manifestações espontâneas: foi muito mais um auditório do que uma assembleia.
Junto com o local, o horário: muito adequado que o evento tenha ocorrido fora do horário de trabalho, o que possibilita a que qualquer pessoa interessada tenha condições de participar. É verdade que uma reunião dessas à noite traz uma plateia muitas vezes já cansada e nem sempre disposta a passar horas que seriam de descanso num debate frequentemente tão árido. Também é verdade que, numa cidade como São Paulo, é grande o número de ocupações que possuem seu turno de trabalho no período noturno. Não se pode pretender alcançar a totalidade da população neste horário. Ainda assim, é maior a chance de alcançar um público maior, e isso deve ser reconhecido como um acerto importante da organização da reunião. Talvez outras reuniões requeiram também outros horários, mas é significativo que a primeira tenha buscado uma acessibilidade maior. Assim, embora o Ministério Público tenha criticado o caráter supostamente pouco democrático da proposta do Arco do Futuro, sua iniciativa de marcar outra reunião para debater o PD numa sexta-feira à tarde (08/03/13) é uma contradição com a própria crítica que formularam. Esperamos que seja apenas nesta ocasião em particular.
5. “Estamos ansiosos para governar, e vocês ansiosos para participar”
Enfim, há muito o que se criticar no evento, mas alguns pontos positivos importantes, que permitem supor que a intenção de promover uma participação efetiva da população não seja meramente no discurso e na intenção. Não dá para discutir, neste post, a proposta em si: o "Arco do Futuro" é passível de discussão, questionável (qual não seria), mas sem dúvida um primeiro passo. Embora seja um projeto concebido a partir de um grupo de especialistas, não se pode dizer que seja um “coelho tirado da cartola”: ele foi apresentado já na época da campanha eleitoral (o que, convenhamos, é uma novidade), portanto, já passou por um primeiro referendo: a eleição de Haddad poderia ser entendida também como uma demonstração de que a população tem interesse em conhecer melhor e debater (e melhorar) esta proposta.
Essa proposta não deixa de simbolizar um sentimento de urgência e certa afobação também da parte dos urbanistas, como que dizendo que também esses querem se fazer ouvir. Se houve uma mensagem tônica de todo o encontro, foi o de que a população sente ter passado quase uma década tendo seus espaços de demanda, reivindicação e participação sistematicamente reduzidos e restritos. Isso vale também para os profissionais da cidade: há anos, os rumos da cidade têm sido ditados por um grupo limitado de interesses, e as demandas por uma concepção mais justa e abrangente da vida urbana foi cerceada também aos urbanistas, em favor de um projeto de cidade disciplinador (no pior sentido da palavra), moralista, mesquinho.
A abertura ao diálogo começou pela inclusão de toda a "massa crítica" que havia sido alijada das decisões e relegada a apenas debates acadêmicos nos últimos anos. Mas não é o bastante, é preciso incluir ainda mais, abrir ainda mais a discussão. É preciso multiplicar os espaços de encontro, os eventos, falar a língua da plateia. Termino com uma citação, uma última referência "bibliográfica": o urbanista Lewis Mumford, que disse:
E se as facilidades que oferece ao diálogo e ao drama, em todas as suas ramificações, constituem uma das forças essenciais da cidade, então uma das chaves do desenvolvimento urbano deve estar evidente: acha-se ela no alargamento do círculo daqueles que são capazes de tomar parte nele, até que, por fim, todos os homens participem da conversa. (...) Pela mesma razão, o símbolo mais revelador do fracasso da cidade, da sua própria inexistência como personalidade social, é a ausência do diálogo - não necessariamente o silêncio, mas igualmente o som ruidoso de um coro que pronuncia as mesmas palavras, num conformismo acuado embora complacente. O silêncio de uma cidade morta tem mais dignidade que os vocalismos de uma comunidade que não conhece nem o retiro nem a oposição dialética, nem a observação irônica nem a disparidade estimulante, nem um conflito inteligente nem uma resolução moral ativa. (MUMFORD, Lewis. A cidade na história: Suas Origens, Transformações e Perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 4ª ed, p. 134)
Começamos com boas intenções. Pode não ser suficiente, mas é necessário que elas existam. Se é verdade que de boas intenções o inferno está cheio, não se sabe de haver mal intencionados no paraíso.
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