Exclusão social, transgressão, imigração e inventividade para sobreviver são os temas principais que perpassam projetos da mostra Post-it City Cidades Ocasionais
por Dafne Melo
Em 1991, imigrantes bolivianos na Argentina começaram a armar barraquinhas às margens do rio Riachuelo, no bairro de Ingeniero Budge, em Lomas de Zamora, cidade da província de Buenos Aires, ao sul da capital. Dezoito anos depois, o local cede espaço, todas quartas e domingos, para a maior feira informal da América Latina, a La Salada. Os números da feira impressionam. Por semana, movimenta 9 milhões de dólares e recebe cerca de 100 mil pessoas. Emprega 6 mil trabalhadores, entre argentinos, bolivianos, paraguaios e peruanos que tiram, em média, 500 pesos (R$ 226) por dia de feira. São cerca de 15 mil postos de venda, 90% deles com produtos têxteis que falsificam marcas famosas, que juntos ocupam uma área equivalente a 20 estádios do Maracanã. Por 30 pesos, é possível sair da feira com um tênis Nike no pé, por exemplo.
O caso de “La Salada” é um dos 70 abordados na exposição Post-it City Cidades Ocasionais, em cartaz em São Paulo (SP) até final de novembro. Pedro Sales, arquiteto e urbanista, curador da mostra no Brasil, explica que o projeto nasceu há alguns anos em Barcelona (Espanha), organizado por Martin Peran, professor e crítico de arte da Universidade de Barcelona, com objetivo de capturar experiências “post-it” pela cidade catalã. O projeto cresceu e desenvolveu uma rede entre artistas de diversos países que passaram a documentar – em fotos, textos e vídeos – casos em diversos lugares do mundo, organizados depois em exposições que além de Barcelona, passou por Santiago do Chile e depois de São Paulo segue para Buenos Aires.
O conceito
Pedro Sales explica que o conceito “post-it” remete a experiências urbanas que se dão à margem da lógica dominante, alterando o espaço urbano e público de uma forma que não está prevista pelo sistema – e aí encontra seu potencial crítico – ainda que, em alguns casos, ela possa vir a ser incorporada pelo capitalismo. Outro ponto do conceito é a questão da temporalidade, já que, a princípio, esses casos seriam efêmeros e, após seu fim, não deixariam rastros, assim como um post-it não deixa marcas em um livro.
Pedro opina que a questão da temporalidade talvez se encaixe mais nas experiências europeias. Um exemplo são as fotos feitas pela artista Francisca Benítez nos arredores do Garde L'Est, em Paris (França). Ela flagrou, em 2005, diversas trouxas de roupas de imigrantes afegãos que, sem lugar para deixar seus pertences, os colocavam em cima das árvores, apoiadas entre os galhos, enquanto saiam para o trabalho ou em busca de um.
Os projetos realizados sobretudo na América Latina, entretanto, acabaram trazendo um questionamento ao conceito, uma vez que aqui, o que é para ser temporário, torna-se, frequentemente, permanente. Prova disso são as favelas, ocupações e cortiços que, se a rigor deveriam ser uma saída temporária para os sem teto – até que o poder público se encarregue de viabilizar moradia –, viram habitações permanentes, como o caso de jovens que vivem embaixo de pontes, à beira do rio Mapocho, em Santiago do Chile.
América Latina
Se o modelo de cidade planejada, com crescimento controlado e uso democrático do espaço público já é impossível dentro do moldes de desenvolvimento capitalista, aqui se torna ainda mais utópico. “As cidades são pensadas de uma maneira de que parte das pessoas são excluídas e então elas se apropriam de espaços ou numa lógica de sobrevivência ou de transgressão”. Dentro dessa última perspectiva, há o exemplo do documentário São Paulo City Tellers que aborda, dentre outros temas, a atividade de grafiteiros que arriscam a vida – pela dificuldade dos lugares a serem grafitados e pela perseguição da polícia – para deixar suas marcas no espaço público.
No sentido de viabilizar a sobrevivência, há o projeto Street Economy Archive, que documenta o comércio informal em grandes metrópoles como Cidade de México, São Paulo, Rio de Janeiro (RJ), Veneza (Itália), Istambul (Turquia), Madri (Espanha) e Skopje (Macedônia). Boa parte dos trabalhadores que se dedicam à atividade são imigrantes, tanto estrangeiros como compatriotas que vão para as capitais em busca de melhores condições de vida.
Entretanto, ainda que os casos abordados na exposição surjam sempre à margem do sistema capitalista, muitos são incorporados, justamente porque se tornam permanentes, além de trazerem potencial de lucro. Pedro Sales cita a Feira do Pari, em São Paulo, na praça Kantuta, realizada por trabalhadores de origem boliviana – muitos sub-empregados em indústrias têxteis dos bairros do Bom Retiro e da Luz e frequentemente explorados em regime semi-escravo. “Essa feira entrou para o calendário oficial dos eventos turísticos da cidade. Mandaram padronizar as barracas, obedecer regras de higiene e hoje a Western Union – uma empresa que faz remessas de dinheiro pelo mundo – resolveu patrocinar a feira e lá eles mandam o dinheiro que arrecadam aqui para os familiares na Bolívia, deixando uma taxa de 5% para a empresa”.
Serviço
Post-it City Cidades Ocasionais
Onde: Centro Cultural São Paulo – Piso Flávio de Carvalho, Rua Vergueiro, 1000, Paraíso (próximo ao metrô Vergueiro).
Quando: Até 29 de novembro. Terça à sexta, das 10 às 20hs. Sábados, domingos e feriados das 10 às 18hs.
Entrada franca.
Mais informações: www.centrocultural.sp.gov.br ou (11) 33974002